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CULTURA

Donato deixa obra vasta e múltipla que atravessa gerações e movimentos

Pianista e compositor da linha de frente da MPB deixa influência da pré-bossa nova ao pós-tropicalismo

Por Morena Melo

18/07/2023 - 0:45 h

Ícone da música brasileira, João Donato convidava a vida para dançar com uma sonoridade percussiva ao tocar piano. O multi-instrumentista não resistiu aos problemas pulmonares que vinha enfrentando e faleceu na madrugada de ontem, na Casa de Saúde São José, aos 88 anos, deixando um legado que atravessa gerações e fronteiras, físicas e imaginárias.

Reconhecido como um artista que reelaborou a música brasileira, ajudando a criar as bases do que se tornaria a bossa nova, João Donato fez movimentos importantes para a projeção do Brasil para o mundo. Ao unir a música brasileira ao jazz e ritmos conhecidos como latinos, Donato diluiu distâncias e reconfigurou sonoridades, tornando possível encontros musicais de dimensões continentais.

O artista deixou mais de 440 composições e 718 gravações cadastradas, segundo levantamento realizado pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad. Entre elas, algumas feitas em parceria com os baianos Gilberto Gil – como Bananeira, A Paz, Lugar Comum e Emoriô – e Caetano Veloso, com A Rã, sendo esta música a mais regravada da carreira de Donato.

Ao todo, foram 74 anos de carreira, com um vigor criativo que acompanhava o ritmo do piano sincopado. Durante a pandemia de Covid-19, participou do lançamento digital do álbum Jazz is Dead, em parceria com músicos de Los Angeles. Em 2021, lançou o disco de inéditas Síntese do Lance, ao lado do parceiro Jards Macalé. Em 2022, no aniversário de 88 anos, foi a vez de lançar o que viria a ser o último álbum: Serotonina.

A cantora e compositora Anastácia, conhecida como a “rainha do forró”, foi parceira de João Donato na faixa de abertura de Serotonina, intitulada Simbora. Para ela, a despedida com um disco que fala sobre felicidade tem a marca do “jeito Donato de ser”.

“Fui convidada por ele para compor, mas tudo deu tão certo que acabamos gravando juntos a faixa que abre o álbum e que agora torna-se o último trabalho em vida. O álbum se chama Serotonina, que é popularmente conhecido como hormônio da felicidade, acho que isso se encaixa perfeitamente no jeito Donato de ser. Tenho certeza que ele vai fazer grandes concertos no céu”, disse Anastácia.

As faixas do álbum foram escolhidas do acervo histórico do músico. Também participam do disco, Rodrigo Amarante, Felipe Cordeiro e Céu.

Para a bailarina e gestora cultural Eliana Pedroso, responsável pelo penúltimo show de Donato em Salvador, o artista deixa uma contribuição única para a música brasileira. “A produção musical, marcada pela ousadia estética e grande criatividade, o tornou uma referência no mundo da música. Em maio de 2018, tivemos a felicidade de propor a João Donato que se unisse a Rosa Passos e viessem para um show no então Café-Teatro Rubi (hoje Estação Rubi), o que nos proporcionou um show mágico, lotado e com direito a sessão extra”, afirma Eliana.

No ano seguinte ao show no Café-Teatro Rubi, João Donato subiu ao palco do 5ª edição do Festival Radioca, ao lado de Tulipa Ruiz. Luciano Mattos, pesquisador musical, DJ e produtor do festival, pontuou como João Donato ocupa um lugar de mestre na música brasileira. “Ele era um daqueles ícones que nem todo mundo conhecia ou sabia exatamente quem era, mas que ajudou a formatar a MPB, criou obras impactantes, era um daqueles mestres de sempre, um cara, do jeito dele, sem ser muito midiático, sem querer aparecer como ícone. Mas deixou um legado impressionante e deixou também uma lacuna, era fora de série, um daqueles artistas que faziam a diferença na música de um país, um dos maiores”, fala Luciano.

Trânsitos

Nascido em Rio Branco, no Acre, em 1934, Donato vem de uma família musical. A irmã mais velha, Eneyda, estudava piano e o irmão caçula, Lysias Ênio, tornou-se o compositor da maior parte das letras de músicas do artista.

Teve uma vida de trânsito por lugares diferentes, movimentos que repercutem na obra. Mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1945, e lá começou a tocar em festas estudantis. Em seguida, começou a tocar em jam sessions no Sinatra-Farney Fan Club. Mas foi em 1949 que iniciou a carreira profissional, como integrante do grupo Altamiro Carrilho e Seu Regional.

Em 1951, começou a estudar piano, que viria a ser o instrumento preferido, com o qual criaria a assinatura musical e marcaria a história da Música Popular Brasileira, como comenta o músico Paquito. “Esse minimalismo dele, essa coisa circular, que é bem da bossa nova, a bossa no seu melhor, na sua essência, sem desperdiçar nota. Ele tinha uma coisa muito filosófica, de valorizar o essencial. A música está ali, inteira, não tem sobra. Como João Gilberto também fazia”, disse.

Em 1953 formou o grupo Donato e Seu Conjunto, em 1954 criou o Trio Donato. Em seguida, em 1956, mudou-se para São Paulo e gravou o primeiro LP, Chá Dançante, produzido por Tom Jobim. Em seguida mudou-se para os Estados Unidos e, entre idas e vindas, viveu no país por 13 anos. Lá, atuou com músicos como Carl Tjader, Johnny Martinez, Tito Puente e Mongo Santa Maria.

O artista falou, em diversas entrevistas ao longo da vida, que o encontro com a música latina aconteceu nos EUA. Isso porque ao perder uma vaga com os Brazilian Boys de Carmem Miranda, Donato vagou pelas ruas de Las Vegas até que esbarrou com um cartaz do grupo de Cal Tjader, cujos discos já conhecia. Na ocasião, foi até o camarim e acabou recebendo um convite para tocar piano na banda. Tudo mudou desde então, das experimentações musicais à projeção da carreira.

Na trajetória, Donato também excursionou com João Gilberto pela Europa.

Entre os mais de 30 discos lançados ao longo da carreira, deixa obras-primas, como A Bad Donato (1970) e Quem É Quem (1973).

Conexões

Se a música de Donato, por um lado, interage fortemente com sonoridades do jazz, difundidas nos EUA e países europeus, também estabelece conexões com a América Latina.

O pesquisador Márcio de Oliveira, em dissertação de mestrado na Universidade de Brasília, trata dessas ligações sonoras na forma de ele tocar piano, sobretudo com as musicalidades afro-cubanas.

“Donato é um músico com uma vasta experiência nas coisas latinas, o que fez nascer um estilo em que mescla o som brasileiro com as influências pessoais. Além disso, é um excelente compositor. Seu piano é uma síntese das informações”, diz o pesquisador.

O cantor e compositor baiano Alexandre Leão também destaca essa dimensão da obra de João Donato. “O mais cubano dos compositores brasileiros, foi pré-bossa-nova, pós-tropicalista, sambista com estilo único, eterno. Só consigo pensar no sol e na beleza simples e sofisticada da obra de João”, afirmou.

Em relação à passagem do grande pianista, compositor, arranjador, cantor, Leão agradece pela contribuição à música e reafirma o legado: “Não quero lamentar a morte de João Donato, prefiro agradecer pela alegria e luz que ele trouxe à música brasileira. Um dos maiores, João. Uma floresta, água corrente, força, vida, Acre, Rio, Havana. João é a natureza, sempre vivo. Viva João Donato”.

O velório do artista acontece hoje, das 11h às 15h, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e a cremação será no Memorial do Carmo, em cerimônia restrita aos amigos e familiares.

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