CULTURA
E todo caminho deu no mar...
Por Laura Dantas, do A TARDE
Qual o termo exato para definir Dorival Caymmi, esse arauto da baianidade que, em pouco mais de cem canções (contando talvez com alguns rascunhos de gaveta), cunhou para sempre, na música brasileira, a marca da Bahia e da sua gente? A síntese de Gilberto Gil, que o chama de Buda Nagô na canção homônima, o apresenta como um predestinado “filho da casa real da inspiração”, aquele que está em sintonia com a doçura, a sabedoria, a espiritualidade. “Contra fel, moléstia, crime, use Dorival Caymmi”, canta Chico Buarque, em Paratodos. A essência da obra caymmiana, burilada sem pressa, ao longo do tempo, com a precisão de um talhe de bisturi, reflete a maestria de quem viveu para cantar e encantar.
Numa crônica em homenagem aos 80 anos do compositor, João Ubaldo Ribeiro escreveu: “Há pessoas que não podem ser descritas, tem que haver convivência. Caymmi é assim. Tem gente que, levada pela enganosa simplicidade das letras dele, acha que ele também é um simples, talvez simplório. Mas não é, é o oposto disso. Lido, informado, de boa memória, tem uma conversa colorida, cheia de metáforas inventivas, expressões faciais maliciosas, gesticulação eloqüente”.
Intransferível – Regida pelo balançar da rede, pelo bater das ondas, pelo movimento dos barcos ou pelo chacoalhar dos balangandãs, a cadência de Caymmi é toda particular e, por isso, universal. É aquela história de ser singular e, paradoxalmente, bastante familiar, portador e, ao mesmo tempo, construtor de uma identidade cultural única e intransferível. Não há brasileiro que não saiba entoar ao menos um dos versos desse hábil contador de histórias, poeta maior diante do mais trágico dos infortúnios: Saveiro partiu de noite, foi/ Madrugada não voltou/ O marinheiro bonito/ Sereia do mar levou.
Muito já se escreveu sobre Caymmi. Livros, artigos, matérias, depoimentos continuam em busca da tradução perfeita de uma obra minuciosa, incólume e atemporal. Estudiosos já a dividiram e a subdividiram em fases e temas (canções praieiras, sambas-de-roda, canções urbanas...), músicos já a catalogaram em songbooks, intérpretes já a leram e releram em incontáveis tributos fonográficos, mas ela permanece indecifrável como os mistérios do mar. “A gente faz o que o coração dita”, cantava ele, com a sabedoria e a naturalidade de quem “sabe que muda o tempo, sabe que o tempo vira”.
Em Dorival Caymmi, O mar e o tempo, Stella Caymmi reproduz uma crônica do avô escrita em 1971, que revela em um dos trechos: “Pudesse eu e, hoje adulto, estaria dando lembranças para todo mundo. Faqueiros, relógios, flores, brinquedos, medidas de Senhor do Bonfim, radinhos, biscoitos, balinhas, santinhos, casas, apartamentos, sítios, galos de briga, cobertores, toalhas, barquinhos, barcos mesmo, grandes, com motor, carros, crucifixozinhos de ouro, prata ou metal comum. Enfim, tudo. Dando presentes, de um tudo, sem medidas (...) Não consegui ainda ser dador, apesar de, como ficou explicado, ter me esforçado tremendamente”. Mas a lembrança que esse Caymmi minimalista não esqueceu de dar à humanidade é a maior de todas, vibra em apenas dois instrumentos essenciais: voz e violão. Na linha entre o samba-canção e o samba-bossa, transformou o andar das mulatas em compasso buliçoso, numa obra que se impõe sintética, clássica, genial.
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