DIA MUNDIAL DA FOTOGRAFIA
Exposição com fotografias de detentas estreia no MAC
Estreia aconteceu nesta terça-feira, 19
Por Maria Raquel Brito*

Mais de cem imagens, dezenas de cartas e documentos e um só desejo: trazer à tona as singularidades das pessoas privadas de liberdade na Bahia. Assim foi construída a exposição fotográfica Daqui de Dentro, que estreia nesta terça-feira, 19, no Dia Mundial da Fotografia, no Museu de Arte Contemporânea da Bahia (MAC).
Organizada pelo Laboratório de Fotografia da Faculdade de Comunicação da UFBA (Labfoto) em parceria com o Núcleo de Estudos sobre Sanção Penal (Nesp) da Faculdade de Direito da UFBA, a mostra é resultado da oficina de imagens com pessoas em privação de liberdade em uma unidade feminina na Bahia. Com entrada gratuita, a visitação segue aberta ao público até dia 31 de agosto, das 10h às 20h.
Segundo o professor Rodrigo Rossoni, coordenador do Labfoto e um dos curadores da mostra, a exposição é a materialização da troca à qual a fotografia se propõe sempre.
“A fotografia é esse diálogo. E este que nós fizemos agora foi bacana, porque toda essa visualidade foi construída junto com essas mulheres. Eu acho que é isso que torna o projeto bem interessante, que é a própria exposição já ser uma grande ressignificação. Porque na prisão elas não podem escolher nada e nesse projeto elas escolheram muito”, diz Rossoni.
A mostra se materializa por meio de fotogramas (imagens reveladas com químicos), pinholes (fotografias feitas com latas de alumínio) e fotografias digitais em grandes dimensões para abordar questões como imagem e identidade, pertencimento e justiça.
Para a professora Alessandra Prado, coordenadora do Nesp, o ponto principal do projeto era promover uma atividade lúdica, relacionada à arte, de forma a promover um momento de descontração e conhecer a perspectiva das pessoas encarceradas em relação à Justiça.
“Esse público tem uma carência muito grande de atividades. Nessa perspectiva, também quisemos nos aproximar da arte, porque a gente sabe como a arte faz bem, como serve para aplacar a tristeza, para acalmar, para estimular a criatividade. Com a arte a pessoa pode sair daquele mundo e transpor, ou até mesmo ir para dentro de si, que é o que a gente acaba apresentando agora na exposição”, afirma.
Olhar sensível

Ana**, uma das participantes da exposição, concorda com Alessandra. Ela e outras mulheres encarceradas que integraram as oficinas puderam visitar ontem a mostra e ver em primeira mão o resultado das atividades. Acompanhadas por policiais penais, elas puderam ver em primeira mão o trabalho que fizeram ao longo dos meses de oficina.
“Foi tudo muito lindo. Aprendi muitas coisas boas, como tirar fotos, como fazer uma pose, coisas que me deixaram realizada. Chegar aqui e encontrar a minha foto na exposição, foto do trabalho também que eu fiz… É muito bom ver esse valor que eles dão”, celebra.
“A gente se preocupou muito que elas fossem as primeiras a ver, porque se algo não estiver do agrado delas, com certeza vamos fazer o máximo de esforço para mudar. A prioridade é que elas se sintam felizes e se sintam bem e belas com o processo”, diz Caíque.
Além delas, outras pessoas especiais marcaram presença: suas famílias. Lágrimas de felicidade e abraços de reencontro tomaram o salão do museu quando Ana reviu a mãe após mais de cinco anos.
Dando vida à mostra

Desde o início, o objetivo do Labfoto e do Nesp com o projeto era potencializar o senso de identidade daquelas pessoas encarceradas, perdido em meio à privação de liberdade.
Na prática, isso teve início ainda nas oficinas de imagens, realizada entre novembro de 2024 e janeiro de 2025, ministradas por Mamirawá, Samara Said, Caíque Silva e Raquel Franco, em conjunto com os membros do Nesp Alessandra Prado, Débora Moreno, Anne Gonzaga e Patrick Alves.
“A gente não queria chegar lá para oferecer um olhar predatório, em cima de imagens que a gente já está cansado de ver sobre pessoas privadas de liberdade. E ouvir dessas pessoas que elas entenderam que nós estávamos ali para fazer essa troca com elas enquanto humanas foi uma das maiores vitórias, na minha opinião”, conta Caíque Silva.
Para o professor Rodrigo Rossoni, a exposição é relevante em diversos graus, para as participantes e também para a universidade. “É fundamental para os alunos, que tiveram diálogos e experiências maravilhosas, encontros muito sensíveis. É uma formação que fica marcada na história de cada um. E mostra o caráter humano e social que a universidade tem. No mundo de hoje, que se fala muito em inteligência artificial, aqui nós estamos lidando com gente que olha no olho, que pega, que toca, que sente, que tem uma história. Acho que é muito rico isso”, afirma.
A prática educativa com fotografia ofereceu um mergulho aos fundamentos da imagem e sua formação em paralelo a reflexões sobre o sentido de justiça.
As pessoas participantes criaram materiais visuais, como câmaras escuras de papel e câmeras de latas de alumínio, laboratório químico de revelação e mapas mentais.
Elas também criaram performances para as sessões de retratos a partir de questionamentos provocadores, e estiveram no comando o tempo inteiro: escolheram a roupa, os acessórios, as poses, tudo que fizesse com que se sentissem bonitas e completas.
Foi assim que Juliana** fez. Não pensou duas vezes ao receber o desafio de escolher itens que a representassem. “Eu falei: ‘eu quero tirar foto com minha roupa do Ilê’. Queria que fosse com minhas contas, meus colares. Meu ex-marido mandou o vestido e ficou tudo perfeito. Eu amei”, diz, admirada.
Com um sorriso de orelha a orelha, ela conta em detalhes o que aprendeu nas oficinas. Depois dessa, que foi sua primeira experiência com a fotografia, ela tomou gosto pela coisa e agora conta estar animada para um futuro na arte.
Rostos que sorriem

Daqui de Dentro pode ser dividida em três etapas, construídas a partir das fases da oficina. Ao chegar, o visitante se depara com imagens mais abstratas e etéreas, em preto e branco, resultado das experimentações das mulheres com fotogramas e câmeras de pinhole.
Como se representasse a visão ainda nebulosa da própria identidade. Depois, estão mapas de si e depoimentos escritos, feitos em processos de vivência que tiveram como objetivo reconectá-las consigo mesmas.
“Essas pessoas vivem todo um processo de mortificação do eu. Lá no presídio não tem espelhos, por exemplo. O sistema prisional traz essa destituição de quem elas são, as transforma em ‘mulheres de laranja’. A gente queria que elas lembrassem quem são. Então tivemos dias de vivências, em que elas fizeram mapas de si, escreveram o que elas gostam, do que sentem saudade, que cor elas gostam, escreveram cartas também para a Justiça. E é esse o segundo momento da exposição, onde a exposição passa a ganhar cor”, diz Caíque.
Daí, chegamos no momento de transição entre as etapas, quando as imagens começam a se mostrar mais nítidas. A transição é marcada por uma caixa mágica, que simboliza o resgate da identidade e dos desejos. Aqui, pela primeira vez, vemos os rostos das protagonistas da exposição – rostos que sorriem.
“O sorriso é afeto, mas ao mesmo tempo é um processo de resistência muito grande. Você imagina que apesar de tudo, apesar do sistema e de todo esse momento que brutaliza, o sorriso fala: ‘eu ainda estou aqui’”, pontua o professor Rodrigo Rossoni.
O terceiro momento traz os retratos feitos durante a oficina. Verdadeiras obras de arte, as imagens fizeram brilhar os olhos das retratadas, de suas famílias e de todos que paravam para ver.
Frente a fundos vermelhos, com olhares fortes e vestimentas bem distintas do laranja que lhes é imposto normalmente, elas se destacam como um forte encerramento para a exposição.
Exposição: ‘Daqui de Dentro’ / Abertura: hoje, 17h / Visitação de 20/08 a 31/08, das 10h às 20h / Museu de Arte Contemporânea da Bahia - MAC_BAHIA (R. da Graça, 284) / Entrada gratuita
**Nomes fictícios adotados para preservar as identidades.
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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