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CULTURA

Filme leva ao extremo as possibilidades de existências paralelas

O longa Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo tem humor absurdo, tão inventivo quanto caótico

Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema

24/06/2022 - 20:46 h
Aos 59 anos, a atriz malaia Michelle Yeoh estrela aqui o papel da sua vida
Aos 59 anos, a atriz malaia Michelle Yeoh estrela aqui o papel da sua vida -

Há um bom tempo que os filmes de super-heróis têm se escorado cada vez mais na ideia do multiverso para solucionar suas tramas e também ampliá-las – independente do problema, tudo se resolve no multiverso. Tal ideia de universos paralelos, em que todos nós possuiríamos existências distintas, tais como multiversões de nós mesmos em chaves, pensamentos e comportamento levemente distintos, mas ainda assim irmanados, tornou-se uma constante nos últimos tempos – e a Marvel é a grande culpada por isso.

Em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, contudo, o conceito de multiverso é revirado pelo avesso, justamente por parodiar esse tipo de terreno da fantasia que, se não chega a ser filosófico em essência, pelo menos mira nos conflitos familiares. Os diretores Daniel Scheinert e Dan Kwan – os Daniels, como se autodenominam – tentam explorar ao máximo as fronteiras do multiverso, extrapolando seus limites para além daquilo que já vimos até então, o que produz um filme inventivo, mas também caótico.

Há um tom inicial de despropósito quando uma personagem aparentemente banal e ordinária recebe uma estranha missão. É o que acontece com Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma imigrante chinesa que vive nos Estados Unidos, gerencia uma lavanderia junto com seu marido Waymond (Ke Huy Quan), com quem tem tido crises no casamento; ainda tem de lidar com a dificuldade de conexão com a filha adolescente, Joy (Stephanie Hsu), e a rabugice do seu pai, o patriarca Gong Gong (James Hong).

Evelyn quer apenas quitar as dívidas com a receita federal estadunidense e acertar as contas e finanças do seu negócio. Mas é ali mesmo, diante da auditora fiscal, encarnação de uma verdadeira vilã (interpretada por uma disposta Jamie Lee Curtis), que ela recebe a informação de que o multiverso precisa dela – através do próprio marido que reencarna uma versão outra de si mesmo, vinda de outro lugar do espaço, o alfaverso.

A partir daí, nada será igual, nem na vida – as muitas existências – de Evelyn, nem no próprio filme que passa a trafegar loucamente pelas possibilidades, ramificações e interferências entre mundos. Trata-se de uma arquitetura narrativa que envolve um sem número de mudanças de cenários, de figurinos e transfigurações entre os personagens e suas muitas versões espalhadas pelo multiverso.

Tudo isso temperado com muita ação – há cenas de luta realmente muito boas – e grandes doses de graça e absurdo (ou as duas coisas juntas, como nas cenas em que personagens lutam usando coisas as mais inusuais, como pochetes, pênis de borracha e até mesmo um cachorro).

As regras do jogo

O filme parece todo muito confuso – e em certa medida é mesmo –, apesar do seu próprio esforço para explicar as “regras” que compõem aquele(s) universo(s). Em linhas gerais, Evelyn é procurada – ou melhor, incomodada na sua realidade que já é desordenada por si só – porque o multiverso inteiro corre risco diante de uma grande ameaça. Curiosamente, a singularidade de Evelyn é a sua própria existência ordinária, mas capaz de despertar um grande poder ao acessar os seus muitos “eus” nos demais espaços.

Isso não faz muito sentido, como grande parte do filme – o que lembra Tenet, filme de Christopher Nolan que quanto mais se explica, menos se entende. A grande jogada aqui, no entanto, é transformar essa mulher comum em uma heroína circunstancial que, no caminho, vai ter de encarar os seus próprios conflitos internos e os embates contra os membros da sua família.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo poderia ser um belo filme de pretexto, em que a trama de fantasia e ação levasse à resolução de um conflito muito mais pessoal – e é bem isso que ele, no fundo, quer fazer aqui. Mas incorpora tanta coisa no meio do caminho, há tantas surpresas, viradas de roteiro e novas ideias nos sendo apresentadas a cada instante, que um sentido maior para o filme perde-se facilmente.

O clímax da trama é longuíssimo, e os acertos de conta entre os personagens – que se desdobram em vários outros, por vezes como vilões, outras vezes como mocinhos – ganham um tom folhetinesco que só consegue esconder a sua fragilidade por conta de toda a pirotecnia que o filme constrói ao redor dos dramas.

Não deixa de ser uma escolha curiosa, mas também fácil, essa de apostar no puro espetáculo.

Pecar pelo excesso

Os Daniels já haviam feito o estranho (para dizer o mínimo) Um Cadáver para Sobreviver, em que Daniel Radcliffe interpreta um cadáver flatulento que ganha uma sobrevida numa ilha de onde um náufrago tenta fugir. Esse é o tipo de história absurda que parece interessar a dupla, tal qual no novo filme. Mas o movimento agora é inverso.

No longa anterior, havia uma ideia inicial inusitada que era esticada e explorada durante o filme inteiro. Já em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo o que não faltam são ideias singulares, criativas, malucas – estapafúrdias mesmo, desdobradas até o fim, tudo em prol de um jogo que parece querer vencer o espectador pelo cansaço, dada a profusão com que elas nos são jogadas na cara.

É como se Michel Gondry (mas aquele lá de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças) dirigisse, com carta branca, um filme como (o ainda em cartaz) Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, tanto naquilo que o cineasta possui de criativo quanto de excessivo. Esse último fator, no entanto, acaba sendo um problema no filme dos Daniels.

O que sobra, portanto, é embarcar nesse mar visual em constante ebulição na tela, mais as muitas referências que se jogam aqui e ali. Os figurinos dos personagens e os cenários mudam com uma rapidez impressionante, assim como os caminhos da própria trama. Os atores estão todos muito bons nas muitas ramificações que seus personagens assumem, um tipo de entrega que faz gosto de ver.

O senso de comédia e nonsense dos diretores pode até funcionar em um primeiro momento, mas também não deixa de ser infantil e abobalhado. Todos os defeitos do filme e seu excesso de elementos são a fortuna, mas também a própria ruína do longa – a depender de como o espectador embarca na aventura.

Há, é claro, um senso de espetáculo que salta aos olhos, mas o maior risco aqui é isso não passar de um mero encantamento fugaz.

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All at Once) / Dir.: Daniel Scheinert e Daniel Kwan / Com Michelle Yeoh, Ke Huy Quan, Jamie Lee Curtis, / Salas, horários: cinema.atarde.com.br

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