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O MÍNIMO É O MÁXIMO

Helena Parente Cunha é lembrada em entrevista inédita para o A TARDE saudada por Cyro de Mattos

Escritora baiana faleceu em 11 de fevereiro de 2023

Por Cyro de Mattos | Especial para A TARDE

28/04/2025 - 7:00 h
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Em Cem Mentiras de Verdade (1985), livro de contos, a baiana Helena Parente Cunha inova a moderna prosa de ficção curta no Brasil. Denuncia nestes contos brevíssimos, alguns nem chegando a dez linhas, uma marcante economia de meios. Funde os limites da poesia e ficção, revela fino espírito de observação do real e sutilíssima capacidade de condensação literária.

A escritora sensível e criativa observa o real, perscruta-o, parte sempre da situação concreta para repoetizar a vida na sua rotina feita de abismos e sonhos. A ficcionista busca um único objetivo, oferecer um aspecto, um gesto, uma impressão, o instante do desencontro de uma humanidade ínfima, prisioneira do viver e do sofrer. Da metamorfose literária expressa no texto, concentrada de emoção e sentimento, a imagem ganha relevo com a cena breve. O fragmento agudo na trama, implícito de tão vivo, faz-se tangível.

Existem em Cem Mentiras de Verdade alusões líricas, que comovem e encantam. Nas estórias em que entra passarinho, o riso tem lugar no gesto e jeito de ser do coronel Titino Cravo. Com sabor de obras-primas, as duas últimas estórias protagonizadas pelo coronel são armadas, em seu fino humor, para desarmar o sério do leitor mais concentrado.

O descritivo, o factual e o denotativo são componentes que estão sempre nos contornos da prosa literária, mas não se fazem presentes nestes mini contos de Cem Mentiras de Verdade. A narrativa de forma objetiva, o diálogo cerrado, o tempo passado do personagem, ingredientes do conto realista entre nós, com ressonância até hoje em alguns contistas, não participam das minúsculas verdades, tão bem fingidas no lado inexplicável da vida. Ausentes de lógica visível, a escrita dessas ficções breves assenta-se numa pontuação psicológica, conotativa, organizando-se em períodos diminutos, às vezes se constituindo de uma só palavra.

Os termos são inventados, formas verbais transladam-se em substantivos e advérbios, a língua torna-se linguagem inventada por quem bem sabe utilizar suas possibilidades e meios de transfigurá-la em ínfima prosa poética, ora com densidade dramática, ora com intensidade lírica. Exemplos dessa linguagem experimentada encontram-se em neologismos como “brancamanhecido”, “devagarosa”, “sorrindissimamente’, “infazia”, “atemorecida”, “despresença”, “dessapato”, dentre outros.

Assim, a linguagem com termos inventados torna o contexto mais rico para exprimir o gesto daquela vida apagada em sua angústia sufocante. Faz-se mais crítica a metáfora quando em sua abrangência do real estende-se sobre um território humano a exibir verdade no dia-a-dia de suas misérias subjetivas.

Em O Fim da Tarde, a mulher prepara todos os dias a mesa para os dois. Duas cadeiras. Duas xícaras. Duas velas. Dois castiçais. O jarro com flores. A toalha de linho engomada. A arrumação convincente. Todas as tardes, sozinha, tomando chá diante do vazio. Em A Moça Bonita, com a sua lindeza no bonde, olhos nos olhos do rapaz, “simpatia em pé no estribo”. A nota sofrida no visível. A amiga ajudante. Dentro das botas ortopédicas, segurando nas muletas. “A moça, com paixão caminhava. Quando buscou o rapaz, não viu mais. Faltaram-se”. Em Acordo, o amor amargo dos cinquenta e dois anos de vida conjugal. O acordo mostra-se na discórdia consumada. Quase aos oitenta anos de idade. Decidiram o divórcio.

Em Cem Mentiras de Verdade, Helena Parente Cunha prefere a concisão máxima, a concentração de efeitos para expor drama e poesia extraídos do real. Sem chegar a ser maldita, em seu compromisso estético e sentimento de mundo, detalha a vida cotidiana e consegue a proeza da ilusão na síntese. Como Dalton Trevisan, Luís Vilela, Vander Piroli, Caio Porfírio Carneiro e Ricardo Ramos, dentre outros contistas do implícito na síntese por excelência, traz em sua escrita a marca da grande contista. Fala pouco em suas breves verdades fingidas, dizendo muito sobre o exercício de todo o peso terrestre no mistério da vida.

Resistência e arte

Quase trinta anos depois de Cem Mentiras de Verdade, a artista volta a exercitar a brevidade em Falas e Falares (2012), conjunto de textos por ela chamado de minicontos. Apresenta a mesma técnica de sugerir o drama com a concentração dos efeitos, a linguagem veloz, aliciante, que alcança ritmo galopante em alguns textos, como em Primeira Estória de Motorista de Táxi.

Em narrativas transitando entre Rio, Salvador ou em algum lugar qualquer, encontramos a sensibilidade delicada da autora, para com sabedoria e arte inovadora forjar seus textos. Em O Aniversário Dele, flagra os olhos do menino, que “se abrem mais e cabem nos tons amarelos das margaridas e dos girassóis, papai aqui é a casa do sol. ” Em Fofurinha do Papai, primor de mini conto, temos esse achado luminoso, em amenidade de linguagem fundamentada na natureza, quando se diz que “há seres que contam os anos e os séculos e eclipses do seu mundo interior, você não sabia, as árvores, quanto mais velhas são, mais jovens serão”. Em Riso de Risada Ensolarada, o leitor é de logo surpreendido em carícia no início com o achado de sonoridades luminosas, “timbres remotos e inflexões reinventadas e imprevistas ondas que se expandiam do gabinete do diretor pelos corredores, até as salas de aula”.

Mini contos ou poemas em prosa curta de ficção, não é preciso procurar muito para saber que em Cem Mentiras de Verdade, o tom dos dizeres ressoam para as negações do existir. Já em Falas e Falares, o nível do discurso pende para as afirmações em que nossa precária condição de ser-estar vai sendo reconhecida com as suas circunstâncias críticas, apresentadas na proeza de, no mínimo, ressoar a dor maior.

Confira a entrevista:

“Escrevo para dizer o que sinto e também o que penso”

Thomas Mann acha que ser escritor é uma maldição, que começa cedo, terrivelmente cedo. Para você, que caminha nessa estrada feita de solidões e desejos, dores e ternuras, o que é ser escritor? Destino, profissão, missão?

Como escritora, vejo-me levada a tentar dizer o que sinto no turbilhão de emoções em que a vida nos coloca. E também tentar dizer o que penso neste mundo de violência e atravessado de contradições e desacertos. Como a realidade é sempre mais do que as palavras podem abarcar, muitas vezes, na tentativa de dizer o indizível, é preciso ultrapassar a língua, mesmo desrespeitando a gramática e as normas da correção. Mas não pelo simples gosto da transgressão, e sim, pela urgência do dizer. Não acho que ser escritor seja maldição. Escrever é muitas vezes doloroso na busca da palavra que se recusa a vir à tona. Mas é sempre altamente gratificante e prazeroso.

Hoje vivemos em uma sociedade que prioriza o estômago, o corpo e o poder. Que função tem a literatura em um mundo que cada vez mais concebe os valores éticos e espirituais como expressão de nadas?

Acredito que a literatura não tenha obrigações salvacionistas, mas tem um compromisso com seu tempo, expressa as tendências da sua época, misérias ou grandezas, frustrações ou vitórias, vícios, esperanças.

Atualmente, em várias cidades brasileiras, sei da existência de inúmeros grupos de poetas e poetisas que se reúnem periodicamente, uma vez por semana ou por quinzena, por exemplo, para dizer poemas da própria autoria, sentindo-se estimulados para escrever sobre temas variados que podem transformar-se em livros individuais ou coletivos. Pelo que entendi, produzem por indiscutível prazer em criar e divulgar sua produção no próprio grupo ou na internet ou em performances em várias cidades e até estados. Por não haver sido ainda legitimada pelos críticos ou pelos cursos de Letras, essa produção fica um tanto à margem da chamada literatura oficial. De uma forma ou de outra, constitui uma das belas características de nossa pós-modernidade multifacetada, onde convivem os extremos positivos e negativos.

A sociedade contemporânea cultiva, em grande escala, a imagem e o som como linguagens para dizer a vida. O suporte do livro tradicional mudou com a chegada dos meios eletrônicos. O livro impresso está na fase terminal? Não acredito nesta visão um tanto apocalíptica. Da mesma forma que a fotografia não acabou com a pintura nem o cinema desbancou o teatro, acho que a riqueza do real exige novas linguagens para ser expressa, sem que uma necessariamente derrube a outra.

Não se pode deixar de considerar que o texto literário abraçou um novo espaço democrático graças à internet, através do exercício usual de blogs, jornais e revistas eletrônicas. Isso faz bem ou mal à literatura?

Cada época tem seu modo específico de considerar o texto literário. Nossa época se caracteriza por mudanças radicais ocorridas em tempo recorde, o que resulta na coexistência de vários aspectos díspares e contraditórios que disputam espaço na página ou na tela. A especificidade do ser literário também se altera ao sabor das características temporais. No novo espaço democrático oferecido pelos meios eletrônicos, sinto que há mais flexibilidade para o gosto não só das elites acadêmicas, mas também para um espaço democrático.

Com a presença forte da televisão e dos meios eletrônicos, a literatura passou a ter grandes concorrentes como instrumentos de lazer e forma de conhecimento. De que maneira isso afeta o autor, que já foi muito prestigiado em outros tempos?

Houve tempos em que o poeta era cultuado como um profeta ou enviado dos deuses. Em outros tempos, se destacava como porta-voz da ideologia vigente. E hoje, onde a tendência se volta para a multiplicidade de expressão, muitas vezes o autor ou a autora se vê pressionado pela originalidade do texto e pela urgência em inovar, o que pode redundar em extravagâncias e obsessão pelo ineditismo. O prestígio vivido pelo escritor no passado me parece obscurecido pela excessiva valorização do poder econômico e seu afã de abranger e deformar valores e princípios.

Uma enxurrada de autores continua a passar por debaixo da ponte. Hoje se escreve mais para menos leitores?

Não sei se hoje se escreve mais para menos leitores, entretanto, talvez por conta da democratização trazida pelos meios eletrônicos, um número maior de autores encontrou mais possibilidades para suas publicações, considerando-se ainda as atuais tendências para abolir hierarquias e hierarquizações, rejeitar regras e formulações que em outros tempos se impunham para a criação literária.

Seu romance Mulher no Espelho, Prêmio Nacional Cruz e Sousa, da Fundação Cultural de Santa Catarina, já em décima edição, é um marco na moderna ficção feminina, a partir da década de 1970. Fale um pouco desse romance maior em nossas letras.

Como disse, escrevo para dizer o que sinto e também o que penso e muito do que imagino. E para apontar abusos, injustiças, violência da sociedade patriarcal, desesperos do sentimento de culpa, hipocrisias das fórmulas vazias da falsa convivência de uma sociedade refém das aparências, as certezas de verdades mentirosas, os preconceitos contra os excluídos, o desejo, o corpo, mulheres anuladas ante o todo-poderoso pai ou marido, distorções da cultura machista, dilaceramento entre dúvidas e milenares perguntas sem respostas. Entre momentos líricos, irônicos, satíricos, dramáticos, trágicos, se sucedem monólogos, reflexões e angústias. Escrever este livro foi aprendizado cruel que me levou a mais de um ano de depressão. Mas o prazer dessa escrita me trouxe a recompensa de sentir que vale a pena ser escritora.

Fale também sobre Impregnações na Floresta, seu último livro de poesia, motivado por uma viagem feita à Amazônia. Um belo livro revestido das percepções íntimas, interiorizado por seu sentimento e sensibilidade decorrente do seu estar no mundo. Como a crítica e seus leitores receberam o livro?

Foi um livro que procurou reviver momentos de silêncio e contemplação no encantamento indizível da floresta. Acho que, por este motivo, as pessoas que se comunicaram comigo me pareceram, de certo modo, integradas naquela magia.

Essa entrevista foi concedida para figurar no livro ‘Palavras’, de Cyro de Mattos, inédito. Helena Parente Cunha faleceu em 11 de fevereiro de 2023.

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