LITERATURA
Livro resgata história de mulher negra e lésbica no século XX em Salvador
Usando uma ficha de internação da tia-avó em uma clínica psiquiátrica, escritora refaz sua trajetória em ‘No Rastro de Estela’
Por Grazy Kaimbé*

Todo bom livro traz personagens marcantes ou um enredo que transcende os limites da imaginação. Para o leitor do século XXI, não é difícil conceber a existência de uma mulher negra e lésbica nos dias de hoje. Mas voltemos ao século XX e imaginemos uma mulher com essa identidade, forte e determinada. Pois bem, essas são as características de Estela, protagonista do livro "No Rastro de Estela", da escritora e pesquisadora Amanda Julieta.
A história desta personagem é resgatada no livro, primeiro romance em prosa da escritora, e seu quarto livro. O No rastro de Estela será lançado neste sábado, 15, às 16h30, na Casa do Benin.
O evento contará com um bate-papo acessível em Libras sobre literatura e memórias de mulheres negras, com a participação da professora Rosinês Duarte, do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
A narrativa de No rastro de Estela parte de um documento encontrado pela narradora do livro: a ficha de internação de sua tia-avó Estela. A partir desse vestígio, a protagonista tenta reconstruir uma trajetória que os registros oficiais não contam, imaginando o que poderia ter sido a vida dessa mulher. A história não é apenas sobre violência, mas sobre resistência, sobre afetos silenciados e sobre as possibilidades de existência para mulheres negras ao longo da história.
A obra mistura prosa e poesia, realidade e fabulação, traçando um caminho que questiona o que foi apagado e reivindica novas formas de contar o passado.

Para Amanda, a ficção tem um papel fundamental na recuperação das memórias apagadas e na disputa das narrativas históricas.
“A literatura pode ser uma ferramenta para recuperar vozes silenciadas. A ficção interfere na realidade ao resgatar histórias sistematicamente apagadas", afirma a escritora, que também é doutoranda em Literatura e Cultura pela Ufba e pesquisa a poesia e a performance de mulheres negras na literatura marginal/periférica. Seu trabalho tem como eixo central a interseção entre memória, resistência e identidade negra.
A obra, publicada pela ParaLeLo13S, selo da livraria Boto Cor-de-rosa, terá exemplares distribuídos gratuitamente durante o evento.
“Não quero que meus livros fiquem restritos a um pequeno círculo. O acesso à leitura precisa ser ampliado. Embora o livro físico não seja a única forma de fazer literatura, quero que essa história chegue ao maior número possível de pessoas. Assim, podemos discutir os silêncios fabricados sobre nossos corpos e trazer essas narrativas à tona. A literatura tem esse poder de tocar questões profundas por meio da sensibilidade, da emoção e do lúdico’, diz a escritora.
Quem é Estela?

O livro apresenta a história de uma mulher negra e lésbica que viveu na Salvador do início do século XX. Sua história, como a de tantas outras, foi silenciada, apagada pelos registros oficiais e pela brutalidade de um sistema que decidiu seu destino.
Diagnosticada com esquizofrenia paranoide, a personagem foi internada no Hospital Psiquiátrico do Solar da Boa Vista, onde passou anos de sua vida. No entanto, antes disso, viveu um amor profundo e secreto com Iolanda, ao mesmo tempo em que era casada com um pescador. Gostava de samba e de tomar banho na Praia da Preguiça.
Sua trajetória, marcada pelo internamento forçado, é também a história de resistência de tantas mulheres negras e LGBTQIAPN+ que tiveram suas existências marginalizadas.
Ao reconstruir a trajetória de Estela, a autora propõe um questionamento sobre quantas outras mulheres como ela existiram e tiveram suas histórias apagadas.
“Quantas Estelas podem ter existido no Brasil sem que suas vidas chegassem ao nosso conhecimento? Essa pergunta é importante para pensarmos no apagamento não só das histórias dos corpos pretos e LGBTQIAPN+, mas também no apagamento desses corpos", reflete a escritora.
Segundo Amanda, escrever sobre a personagem foi também um exercício de imaginação crítica. A autora se inspirou no conceito de "fabulação crítica", da filósofa e zoóloga Donna Haraway, professora emérita da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. Sua teoria propõe ir além dos arquivos e imaginar outras formas de vida possíveis, expandindo os limites do que se pode conceber a partir da história e da ficção.
“Pesquisei muito sobre a psiquiatria no Brasil e como as instituições psiquiátricas serviram como prisões para pessoas negras. Foi doloroso acessar esses registros, mas meu objetivo era mostrar como Estela encontrou brechas para existir e criar sua própria história, apesar da opressão", conta.
No entanto, mais do que a violência imposta às personagens, No rastro de Estela busca ressaltar a potência dessas vidas. "Gostaria que esse livro não fosse sobre a dor, mas sobre a força dessas existências que tentaram apagar", afirma Amanda.
Questionada sobre quem seria Estela na atualidade, a escritora responde: “Eu acho que Estela poderia ser qualquer uma de nós, mulheres negras. Ela foi livre, apesar de tudo. Acredito que hoje seria uma dessas mulheres comuns, cuja existência admiramos muito”, finaliza.
Lançamento do livro “No rastro de Estela” / Sábado (15), 16h30 / Casa do Benin (Rua Padre Agostinho Gomes, 17 - Pelourinho)
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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