CULTURA
Lula Meteorango vive!
Ele foi um multiartista autodidata, um rebelde, um iconoclasta capaz de pintar, esculpir, dirigir, compor, cantar, escrever e desenhar
Por Raul Moreira | Especial para A Tarde
Encontrá-lo em Salvador era quase sempre uma alegria. Após longos sumiços, do nada, o víamos perambular pelas ruas da Barra. Nos últimos anos, no entanto, por conta da pandemia e de outras questões, algumas de fundo ideológico, isolou-se, como um ermitão, o que não o impediu de tentar materializar as suas criações artísticas, como sempre.
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Não mais o veremos, pelo menos em carne e osso. Sim, foi-se, aos 81 anos incompletos, Lula Martins, o Lula Meteorango, como passou a ser conhecido após protagonizar Meteorango Kid – O Herói Intergalático (1969), de André Luiz Oliveira, considerado por alguns como um dos 100 mais importantes filmes da cinematografia brasileira.
Apesar da fama que o papel lhe conferiu, a arte de atuar foi, como dizer, um acaso na sua vida, até porque, o personagem que interpretou no filme de André Luiz Oliveira era ele mesmo: Lula Martins foi um multiartista autodidata, um rebelde, um iconoclasta capaz de pintar, esculpir, dirigir, compor, cantar, escrever e desenhar, tanto que é autor de dezenas de capas de discos icônicos, a exemplo de Acabou Chorare (1972), dos Novos Baianos, considerada pelos críticos a melhor daquele ano, além de ser o letrista de Rock Mary, imortalizada na voz de Paulinho Boca de Cantor, em 1981.
Sobre ele, disse o saudoso e aclamado designer Rogério Duarte: “Trata-se de uma ave rara, de uma dos mais destacados personagens de uma era mágica”. Por sua vez, o acadêmico estadunidense Christopher Dunn, autor de Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (2001), foi categórico em afirmar: “Lula Martins, que participou da Bienal de São Paulo de 1967, a primeira de pop art no Brasil, com o objeto Quero conversar com você, foi talvez o artista mais interdisciplinar de uma época marcada pela permeabilidade entre as artes”.
Aliás, sobre quem foi o multiartista, o mesmo Christopher Dunn foi certeiro ao dizer: “Lula não foi vítima nem vencedor: ele captou bem as ambiguidades de sua geração, que não realizou a sonhada transformação, a revolução, mas deixou um legado riquíssimo de resistência e criatividade.
Lula “Meteorango” Martins foi forjado no caldo da contracultura, e Salvador, que à época era uma das mecas do movimento no Brasil, por meio da Tropicália, deu-lhe régua e compasso, com um pormenor: filho de uma classe média rural – seu pai era fazendeiro – e nascido no então distrito de Itagi, em 1943, a sua adolescência e juventude foram vividas entre as cidades de Ipiaú e Jequié, onde, na primeira, tornou-se operador projecionista do Cine Éden.
Como muitos baianos talentosos, naqueles tempos de ditadura militar, Lula Martins, após ganhar os holofotes com “Meteorango Kid”, deslocou-se para o “Sul maravilha”. E foi lá, ao lado dos Novos Baianos, de Rogério Duarte, de Tom Zé e de outros famosos, como José Celso Martinez, que desenvolveu o seu talento de artista gráfico, período no qual também começou a pintar, esculpir e a escrever músicas em larga escala.
Em São Paulo, na metade dos anos 1970, casou-se com a uruguaia Muriel Sayanes, com quem teve quatro filhos (Naia, Guriatã, Teo e Alef). Com ela, viveu muitas “aventuras culturais”. Separou-se nos anos 1990, quando se uniu à artista plástica espanhola Amelia Viejo, passando a habitar entre Madri e uma área rural da Andaluzia, onde produziu uma enorme quantidade de grandes esculturas.
Em 1995, de volta, revive uma cena de “Meteorango Kid” na cruz, no documentário Talento Demais, de Edgard Navarro, talvez sem imaginar que a sua vida continuaria, no sentido da procura, uma verdadeira via-crúcis. Foi assim ao tentar viabilizar o seu roteiro, Anésia Cauaçu, filme histórico baseado numa personagem real das bandas de Jequié. Porém, após anos de idas e vindas em busca de patrocinadores, o projeto, custoso, ficou no meio do caminho.
Se o filme não saiu, o seu livro de memórias foi impresso. Lançado em 2008, no Panorama Coisa de Cinema, Mágicas Mentiras tornou-se não apenas um documento sobre uma época, mas, também, revelou as diversas facetas do artista, que expôs a sua vasta produção cultural, inclusive com direito a fotos coloridas dos seus trabalhos, como aquela da capa do LP Roqueiro Baiano, de 1986.
Ontem, no calor da perplexidade do anúncio de sua morte, que pegou a todos de surpresa, uma vez que aparentemente gozava de boa saúde – o coração falhou –, para além das notícias repetidas nos sites, dois personagens que o conheciam, no bem e mal, estavam abalados: o primo, o cientista político e também artista Carlos Lobão, e o cineasta Walter Lima, ambos “guardiões” e apoiadores de Lula Meteorango ao longo de décadas.
Hoje, o corpo de Lula Martins, que acreditava no deus natureza, será cremado no cemitério Jardim da Saudade, em Brotas, em cerimônia privada. E, se serve de conforto, ontem, muitos dos seus amigos foram categóricos em afirmar que ele, na condição de “herói intergalático”, vai estar em alguma galáxia a nos observar, talvez a rir de todos e dele mesmo.
Lula Meteorango vive!
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