MÚSICA
Maria Bethânia: os 60 anos de uma carreira abrasadora
Na noite de 13 de fevereiro de 1965, ela subiu ao palco do Teatro de Arena (RJ), no show ‘Opinião’
Por Marlon Marcos*
![Maria Bethânia](https://cdn.atarde.com.br/img/Artigo-Destaque/1300000/1200x720/Maria-Bethania-os-60-anos-de-uma-carreira-abrasado0130702200202502122031-ScaleDownProportional.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.atarde.com.br%2Fimg%2FArtigo-Destaque%2F1300000%2FMaria-Bethania-os-60-anos-de-uma-carreira-abrasado0130702200202502122031.jpg%3Fxid%3D6554276%26resize%3D1000%252C500%26t%3D1739433682&xid=6554276)
Era terça-feira, sob os ventos outonais, em Santo Amaro da Purificação, em 18 de junho de 1946, nascia Maria Bethânia Vianna Telles Velloso. Filha de Canô Velloso e Zeca Velloso, sendo a caçula nascida do ventre de sua mãe. Família grande, além das tias irmãs do pai, moravam na casa deste ilustre funcionário dos Correios, os irmãos de Bethânia: Clara Maria, Maria Isabel, Rodrigo Antonio, Roberto José, Caetano Emanuel. Tornaram-se filhas afetivamente agregadas Nicinha e Irene, ampliando a irmandade desta que seria uma das famílias mais importantes da Música Popular Brasileira.
Santo Amaro sempre foi uma cidade do interior permeada de muitos mistérios, formada em sua maioria de pessoas pobres e negras, dominadas pelos brancos, senhores de engenho da cana-de-açúcar e pelo catolicismo vigente, mas a força popular de tradições afroindígenas e os terreiros de candomblé efervesceram aquele território e protagonizaram a produção cultural da cidade.
Maria Bethânia, idiossincrática desde criança, tendia para as artes e sonhava com o estrelato nos palcos. Imersa numa educação católica, a inquieta menina convivia com entidades espirituais do candomblé, os caboclos de Dona Edith do Prato, que avisavam o destino da criança: “filha de Iansã, protegida dos ventos e das águas, será conhecida no mundo inteiro”, o caboclo vaticinava como uma salva aos pés dos atabaques, abençoando o incandescente destino da caçula de Dona Canô. Seus maiores aprendizados na infância e adolescência foi com o irmão 4 anos mais velho, aquele que escolheu seu nome, o mano que a impressionava e despertava nela uma profunda admiração desde sempre, Caetano Veloso.
Maria Bethânia queria viver as delícias da infância e da adolescência em sua cidade natal, ao lado de seus familiares e amigos, jogando futebol, sonhando com palcos e trapézios, estudando o que gostava e suportando matemática, encenando esquetes teatrais dirigidas pela mãe, sentindo a vastidão imaginada do seu quintal, com suas árvores inspiradoras, brincando de faquir com Caetano, sentindo-se segura e criativa, a imaginar todas as possibilidades boas que a vida poderia lhe dar. O tempo passou e a adolescente teria que deixar Santo Amaro para ir cursar o Segundo Grau na Cidade da Bahia, experiência compulsória que a fez desgostar da nova cidade em sua vida, cidade que a impulsionaria para se tornar uma das mais importantes cantoras brasileiras de todos os tempos.
Trampolim para a glória
São Salvador da Bahia, a capital do estado, serviu de ponte para o trânsito de Maria Bethânia até o centro do seu estrelato. A adolescente chegou a esta cidade em 1960, quando tinha 14 anos. Triste porque queria continuar morando em Santo Amaro, encontrou abrigo nas águas do Dique do Tororó e na beleza infinda das águas marítimas da Baía de Todos os Santos, vista do Centro antigo da cidade. Mas, para além das águas, a cena cultural de Salvador impactou a jovem que, na companhia do irmão genial, descobria a força do teatro local, a produção de músicas clássicas e populares, os espetáculos de dança, o cinema como invenção de mundos, as rodas literárias, os saraus inveterados, as boates, os artistas, tudo como resultado das políticas públicas e universitárias engendradas pelo reitor da Universidade da Bahia, professor Edgar Santos.
Encantou-se por Helena Ignez, musa dos palcos e das telas, se apaixonou por atores e diretores, e, em 1963, estreou só com a voz no espetáculo Boca de ouro, dirigido por Álvaro Guimarães, entoando Na cadência do samba, de Ataulfo Alves, luzes apagadas e o teatro ouvia nascer a voz rascante que se tornaria um emblema de beleza na cultura musical deste país. Havia ali uma atriz ou uma cantora? Maria Bethânia nasceu uma artista fronteiriça, entrecruzada pela emissão musical da voz e pelo dizer textual interpretativo ao modo das atrizes.
Foi justamente esta construção estética entrecruzada que desenhou nela a sua singularidade expressiva. O ano de 1964 serviu de vitrine para grandes nomes da cultura brasileira começando suas carreiras: Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Caetano Veloso, Djalma Correa, Alcyvando Luz, Fernando Lona, Antônio José, Antônio Renato, Roberto Santana e, claro, Maria Bethânia, todos envolvidos com o espetáculo Nós, por exemplo, encenado no Teatro Vila Velha, palco alavanca, lugar esperança, teatro das asas, que refletiu a arte de uma adolescente de 18 anos que encantou uma estrela da música brasileira que existia no centro da nossa cultura.
A estrela era a inesquecível Nara Leão e o lugar central era o Rio de Janeiro. Nara impactada com o “canto agreste” e a força cênica de Bethânia indicou seu nome para substituí-la no show Opinião, no Teatro de Arena , grande sucesso de crítica e público naquele ano, mas Nara cansada de fazê-lo e cheia de novos planos, saiu de cena e entregou a Maria Bethânia sua chance de ouro de se tornar uma estrela logo na primeira noite em que se apresentou no Opinião.
Liberdade como princípio
Após a indicação de Nara Leão, Maria Bethânia foi convidada pela produção do espetáculo Opinião, que estreou no Rio em 1964, mesmo ano do início da ditadura militar. O texto foi concebido por Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa e dirigido magistralmente por Augusto Boal, tendo em cena originalmente Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale.
A estreia de Maria Bethânia no Opinião ocorreu na noite de 13 de fevereiro de 1965, teatro lotado, e em cena uma artista de 18 anos, segura, agressiva, expressando no corpo e na voz as histórias do Nordeste brasileiro, cantando o Carcará com a força interpretativa necessária àquela canção. Sobre a estreia memorável de Maria Bethânia no Opinião, Boal analisou: “Nunca vi um teatro em peso esperar na coxia para falar com uma estreante. Bethânia já estreou consagrada pelo público”.
Daí, o Brasil assistiu a ascensão de uma artista singular, que levou, para o eixo dominante nacional, traços de um Nordeste esquecido e de uma Bahia minimizada pela ignorância sudestina e sulista. A Bahia da magia na voz agora de uma mulher mestiça, nascida no interior do Brasil, entre a secura e abundância, entre o catolicismo e o candomblé, entre a doçura e a agressividade, entre o cantar e o dizer. Maria Bethânia entrou na cena nacional exigindo respeito e liberdade de expressão. Já em 1965, lançou seu primeiro álbum publicizando composições de seu irmão Caetano Veloso e o canto da amiga Gal Costa, assinando ainda como Maria da Graça, num dueto inesquecível na canção caetaniana Sol Negro. Maria Bethânia, no início da carreira, se viu obrigada a cantar sempre o Carcará e convidada a se tornar uma cantora de protesto. Negou as duas imposições e exigiu dos seus empregadores que respeitassem nela a liberdade como um princípio estético. E assim caminhou, conquistando seu espaço com talento e atitude, cantando somente o que coubesse em sua voz e interpretação e agradasse aos seus ouvidos.
Lançou um disco memorável com Edu Lobo em 1967. Começou a cantar na noite as canções de amor que tanto gostava. Ainda em 1967, conheceu um amigo que seria um divisor de águas em sua arte de cantar, o ator e diretor Fauzi Arap, com quem fez o antológico show Comigo me desavim. Conheceu o Terra Trio, grupo musical importantíssimo para sua carreira. Lançou em 1969 o álbum Maria Bethânia, inserindo no mainstream sonoridades dos terreiros, louvando os caboclos que conhecera na casa de Dona Edith, na sua Santo Amaro, usando a voz artística como uma espécie de reza em gratidão as bênçãos que recebera dessas entidades.
Fauzi Arap foi de suma importância na carreira de Maria Bethânia: ele a compreendeu como ninguém e ela o ouviu da mesma maneira. Juntos, ao lado do Terra Trio, fizeram trabalhos profundos misturando música e teatro, assinalando uma autoria inovadora e eficiente para espelhar o Brasil em seus entraves e possibilidades. Segurando nas mãos de Fauzi, Maria Bethânia realizou em 1971, o seu show mais comentado até hoje: Rosa dos Ventos – Show Encantado.
70: explosão com Álibi
Na esteira do trabalho e do sucesso, Bethânia chegou aos anos 1970 já consagrada como uma das três maiores cantoras do país naquela época. Para Ferreira Gullar, ela era a mais singular e a mais importante entre todas. Gravou álbuns expressivos e inovadores, como A tua presença (1971) cantando em inglês pela primeira e única vez, em homenagem a Billie Holiday. Trouxe Drama em 1972. Um 1973, Drama 3º Ato, gravado ao vivo, marca registrada da cantora já considerada uma rainha dos palcos. Pássaro proibido em 1976, Pássaro da manhã em 1977. Em 1978, ela lança Álibi e arrebenta o mercado fonográfico, se tornando a primeira mulher a vender mais de um milhão de cópias de discos. Em 1979, continua a ser uma campeã de execução nas rádios com o disco Mel, com a música título tocando exaustivamente nas rádios.
Importante destacar a gravação do álbum (ao vivo) A cena muda (1974), um show irretocável que juntou novamente o talento de Maria Bethânia, Fauzi Arap, Flávio Império e Terra Trio.
Foi em 1976 que ela teve a ideia de se reunir a Caetano, Gil e Gal, para juntos comemorarem os 10 anos de carreira individual do quarteto saído da Bahia. O encontro foi denominado de Os Doces Bárbaros, tornando-se um evento controverso e cheio de sucesso, um dos mais marcantes em toda história da Música Popular Brasileira.
Ciclo e os anos 80
Ela iniciou os anos 80 com Talismã (1980), Alteza (1981), álbuns relevantes e precisos em traduzir as adesões estéticas da cantora. Mas foi com Ciclo (1983), que a cantora ocasionou uma revolução na discografia da época.
Trabalho acústico elaboradíssimo, não teve vendas expressivas, mas renovou o cenário musical do país. Gravou A beira e o mar (1984), o belíssimo Dezembros (1986), Maria (1988), o dilacerante Memórias da Pele (1989).
90: Canções que você fez
Maria Bethânia iniciou os anos 90 com um trabalho comemorativo aos seus 25 anos de carreira, um disco deslumbrante que reuniu Mangueira, Gal Costa, João Gilberto, Alcione, Nina Simone, uma obra prima imersa no jeito baiano de festejar. Em 1992, o álbum Olho d’água, de beleza retumbante, não mobilizou muitas vendas. É em 1993, com As canções que você fez pra mim, um álbum exclusivo com o repertório autoral de Roberto e Erasmo Carlos, que a cantora volta a vender milhões de discos.
Marcados em cuidado e beleza musical nasceram Âmbar (1996) e A Força que nunca seca (1999). Importante ressaltar que ao longo da sua extensa carreira, Maria Bethânia produziu vários álbuns gravados ao vivo, resultado de shows que apresentavam seus álbuns gravados em estúdio. Entre eles, destaca-se Imitação da vida, de 1997, quando a cantora intercalou seu show com trechos de poemas de Fernando Pessoa.
2000: canto antropologia
A presença de Maria Bethânia em nosso cancioneiro não pode ser dimensionada apenas no aspecto musical. Em seu trabalho, existe um sentimento de brasilidade que nos ajuda a nos entendermos como povo. Há, ali, um requinte literário e ao mesmo tempo antropológico que enxerga o Brasil pela lente dos mestiços, dos negros, dos indígenas, dos nordestinos, dos terreiros, do afro-catolicismo, das quebradas populares.
A intelectual intuitiva lançou trabalhos como Maricotinha (2001), Cânticos, Preces , Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu (2003), Brasileirinho (2003), Que falta você me faz – Músicas de Vinicius de Moraes (2005), Pirata (2006), Mar de Sophia (2006), Omara Portuondo e Maria Bethânia (2008), Encanteria (2009), Tua (2009), Oásis de Bethânia (2012), Meus Quintais (2014), Mangueira: a menina dos meus olhos (2019), Noturno (2021).
Caetano e o eterno agora
Esta carreira autoral, que se marca em 60 anos de existência, se alicerça em nomes como Gonzaguinha, Chico Buarque, Chico César, Djavan, Sueli Costa, Ana Basbaum, Gal Costa, Alcione, Rosinha de Valença, Angela Ro Ro, Gilberto Gil, Roberto Mendes, Jorge Portugal, Roque Ferreira e nas tecnologias de terreiro e nas invenções populares de todos os dias.
Se inspira em Clarice Lispector e Fernando Pessoa. Em Perinho Albuquerque e Jaime Alem. Se reflete em Fauzi Arap. Mas bem no fundo, esta carreira começa e continua na confluência eterna, mais significante que o sangue, do encontro de dois que são irmãos, que se trouxeram até nós, indissolúveis.
O nome Maria Bethânia converte-se na beleza criadora do seu dofono Caetano Veloso. No agora e para sempre.
*Marlon Marcos é poeta, antropólogo, jornalista, historiador, pesquisador das obras de Maria Bethânia e Clarice Lispector. Professor da Unilab-Malês. E-mail: [email protected]
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