CULTURA
Muito: Direito ao conhecimento

Por Gilson Jorge

Estudante dedicado desde que era bem pequenininho, desses que só tiram nota alta, Eliel Simas sempre foi fã de livros. E ganhou um motivo para sorrir no ano passado, quando se mudou de Paripe para Cajazeiras V, onde se tornou vizinho de uma biblioteca comunitária. É um dos integrantes do Solstício Poético, que se junta para recitar poesias próprias.
Mas nem sempre é preciso declamar em público. “Às vezes, não tem quem te ouça, mas só o fato de sentar e escrever já é uma forma de botar para fora o que está no peito”, diz Janice Nascimento, uma vendedora que usa parte de seu tempo como sacoleira de livros, levando exemplares para emprestar a quem mora distante da biblioteca.
No dia seguinte ao violento ataque de um policial a um adolescente de 16 anos da periferia, por causa do seu cabelo, uma menina negra, black power, um ano mais nova, enche o pulmão de ar e começa a recitar um poema que escreveu no ano passado, intitulado Desabafo. Diz um de seus versos: “Para a polícia, eu sou sempre suspeito. Eles dizem que é bala perdida. Mas mesmo sem GPS ela acha o meu peito”, diz. Railany Lopes.
Ela começou a se interessar por literatura ainda na infância.A mãe, vendedora de picolé, acha isso bobagem e nunca incentivou a leitura. Entre o feijão e o sonho, pensa que ler é perda de tempo. Mas a garota não só tomou gosto por frequentar a Biblioteca Comunitária de Ítalo, em seu bairro, Cajazeiras V, como é uma das ativas integrantes do Solstício Poético, que reúne periodicamente jovens autores dispostos a compartilhar arte e experiências de suas incipientes vidas.
Tímido, Willian Kelvin, 13 anos, demora alguns segundos a responder por que é importante ter uma biblioteca perto de casa. “A gente se expõe a outros mundos”, diz em um só fôlego, sem acrescentar mais explicações.
É a única biblioteca comunitária das Cajazeiras, aglomerado de bairros que reúne mais de 500 mil habitantes, segundo dados da prefeitura. Águas Claras, que às vezes é contado como parte das Cajazeiras, tem três bibliotecas comunitárias. “Como é uma área muito grande, temos uma pessoa que leva livros em uma sacola e os empresta a moradores de outras áreas”, explica a coordenadora Luciana Paixão, que cursou pedagogia na Uneb e voltou para trabalhar na instituição.
A Biblioteca Comunitária de Ítalo havia sido idealizada pelo padre italiano Luis Lintner, que comandava a ONG Casa do Sol, até ser assassinado em 2002, vítima de gangues que atuavam na região. Os recursos para a instalação do equipamento chegaram dois anos depois, após o atropelamento fatal do jovem italiano Ítalo Gambiaghi, quando sua família decidiu vender seus bens para apoiar um projeto social no Brasil. Em 2005, a biblioteca era inaugurada na data da morte do padre, 16 de maio, com o nome do principal doador.
Rede
Estima-se que em Salvador haja cerca de 40 bibliotecas comunitárias, das quais apenas 14 estão vinculadas à Rede de Bibliotecas Comunitárias de Salvador, uma entidade criada em 2013 pelos organizadores da Biblioteca Comunitária do Calabar. Até então, as bibliotecas comunitárias se dividiam em dois grupos de sete.
O modelo de gestão das bibliotecas inclui duas funções. A coordenação envolve a parte administrativa, captação de recursos e contatos institucionais. Uma das tarefas dos coordenadores é o que na rede é tratado como incidência política. É a atuação junto aos conselhos estadual e municipal de cultura, Câmara dos Vereadores, Fundação Pedro Calmon e demais instâncias públicas do setor. Em 2013, por exemplo, as bibliotecas comunitárias participaram da elaboração do Plano Municipal do Livro, da Literatura e da Biblioteca.
“A gente trabalha no direito de leitura, muito baseado em Antonio Candido”, afirma o coordenador da rede, Rodrigo Rocha, conhecido popularmente como Rodrigo Calabar. Em um artigo publicado em 1988, chamado O direito à literatura, o sociólogo e crítico literário Antonio Candido pontua como a literatura pode ser um instrumento para desmascarar as injustiças sociais e declara: “Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização”.
Na última quinta, o estado de Rondônia apareceu no noticiário depois que o governador Marcos Rocha ameaçou retirar das escolas públicas Macunaíma, de Mário de Andrade, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e outros 41 livros.
Carências
Os encarregados pela mediação de leitura, que organiza a contação de histórias para as crianças, promove oficinas e outras atividades culturais, além de zelar pela conservação e atualização do acervo e das instalações em geral. “Oferecemos também cursos de teatro, dança e música”, conta Vitória Benedita, mediadora de leitura da Biblioteca Comunitária de Ítalo, que participou em setembro passado da primeira edição do Festival Literário Nacional em Cajazeiras.
As bibliotecas comunitárias têm sido convidadas para as feiras locais, mas ainda há a expectativa de que autores locais sejam publicados e convidados a falar de suas obras. “Planejamos entrar em contato com editoras para viabilizar publicações”, afirma Vitória.
Mesmo que dependa também de doações, a biblioteca de Cajazeiras V tem uma infraestrutura superior à maioria de suas congêneres. “Mais do que livros, nesse momento precisamos de doações de móveis e de material de escritório, como papel ofício”, relata a universitária Janete dos Santos Nascimento, mediadora da Biblioteca do Calabar, onde funciona também uma pequena sala de exibição de filmes.
A mediação é responsável também pela aprovação do que vai ser exibido aos meninos. “Não passa nenhum filme que eu não tenha visto”, afirma ela, que prioriza a exibição de desenhos animados.
Um fator interessante em algumas dessas bibliotecas é a busca pela formação de acervos por segmentos. Enquanto a biblioteca do Calabar, que já tem um razoável catálogo de feminismo e de literatura de cordel, busca ampliar a oferta de livros LGBTQI+, a Biblioteca Clementina de Jesus, no Uruguai, oferece um impressionante catálogo de livros de literatura afro-brasileira e indígena. “Como a nossa comunidade tem mais de 70% de negros, achamos importante contemplar esse segmento”, afirma a coordenadora da biblioteca, Solange Sousa.
Um problema comum às bibliotecas comunitárias é a incerteza quanto ao tamanho real de seu acervo. Algumas unidades admitem ter cadastrados menos de um terço dos exemplares que consideram ter. “Algumas bibliotecas chegaram a ter 100% do acervo cadastrado, mas houve um problema com o software utilizado”, declara o coordenador da rede.
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