O multimídia Rogério Duarte fala sobre seus dias de agonia | A TARDE
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O multimídia Rogério Duarte fala sobre seus dias de agonia

Publicado domingo, 21 de setembro de 2008 às 14:50 h | Atualizado em 21/09/2008, 15:03 | Autor: Roberto Midlej, do A Tarde

O título de artista multimídia, comum aos artistas de gerações recentes, poderia ser conferido a Rogério Duarte desde a década de 60, quando ele já atuava como designer gráfico, compositor e músico. Inquieto, o baiano nascido em Ubaíra realizou trabalhos com Glauber Rocha, como a co-direção do filme A Cruz na Praça, de 1959. Foi também para o cineasta baiano que Rogério realizou um de seus trabalhos mais importantes: O pôster de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Criou capas de discos para Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Mautner. Em 2003, recebeu dos Titãs o convite para fazer a capa do CD Como Estão Vocês?.
A inquietude do designer lhe custou caro: em 1968, após atuar no movimento estudantil, Rogério foi preso e torturado e permaneceu dez dias em cativeiro, quando teve certeza que morreria. Nesta entrevista a A TARDE, ele fala com o repórter Roberto Midlej sobre seus dias de agonia.
Mas o tropicalista Rogério Duarte é tão inquieto que, mesmo sabendo que está com câncer de garganta, diagnosticado há cerca de cinco meses, não pára: está criando, junto com o colega Bel Borba, a rosácea que vai enfeitar a fachada do Espaço Unibanco de Cinema – Glauber Rocha, que será inaugurado em breve na Praça Castro Alves.


A TARDE - Como se deu sua aproximação com o tropicalismo?
Rogério Duarte | Aqui em Salvador, eu era amigo de Glauber, era namorado de Aneci, irmã dele. Eu e o Glauber conhecíamos outras pessoas daqui, como Antônio Pitanga. Caetano diz que me conhecia, mas eu só o conheci no Rio de Janeiro. Em 1965, escrevi um ensaio sobre design e eu já tinha afinidade com o pessoal da música. Fui um dos quadros da exposição Tropicália, de Hélio Oiticica, antes do movimento tropicalista. Já fui membro da Tropicália ali. Isso foi entre 66 e 68. Quando o disco de Caetano de 1967 [que tem a música Alegria, Alegria] foi lançado, ainda não havia conceito de tropicalismo. Levamos o disco para muitas pessoas ouvirem e uma delas foi o Luiz Carlos Barreto, produtor de cinema, pai de Bruno Barreto. E ele disse: “Legal, isso é o tropicalismo”. Ele que inventou a palavra. Daí, surgiu o nome tropicalismo. Mas as pessoas já estavam reunidas: eu, Torquato [Neto, poeta], Gil, uma turma de gente do Rio, junto com o pessoal do [Teatro] Opinião. Misturaram as turmas porque eu era do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE do Rio e Caetano, daqui. Diria que o CPC tem muito a ver com a erupção do tropicalismo.

AT | Existem criadores do tropicalismo?
RD - Se considerarmos o tropicalismo como movimento de massa, sem dúvida o papel de popularizá-lo coube à música e esse papel de popularização tem que ser atribuído a Caetano e a Gil. O ponto fundamental é que o tropicalismo foi multimídia. Tinha teatro, com Zé Celso [Martinez Corrêa], tinha cinema, com Glauber... O movimento transcende a música. Fui um personagem importante, mais que um artista.

AT | O senhor escreveu o livro Tropicaos (2003), sobre o tropicalismo. Especulou-se que ele seria uma resposta ao Verdade tropical (1997), de Caetano Veloso. Trata-se realmente de uma resposta?
RD - Não, não tem nada a ver. Há um tempo, surgiu uma matéria em que eu dizia que o tropicalismo transcende a música Verdade tropical era “mentira tropical” e eu iria escrever o livro Mentira tropical para denunciar as mentiras do Verdade tropical. Jornalistas de má fé, que tinham bronca com Caetano, alimentaram isso. E eu também fui culpado por essa confusão porque eu tinha umas restrições ao livro, afinal, ninguém é só vaca de presépio. Mas meu livro não tem nada a ver com o Verdade. Tropicaos é  totalmente diferente, até porque reúne textos que já existiam muito antes de Caetano publicar o Verdade Tropical. Nada foi produzido para ser resposta a Caetano, que inclusive ficou chateado com a confusão. Mas ele é meu amigo, meu compadre, muito leal, sincero, mas ele ficou triste quando leu essa matéria num jornal de São Paulo. Logo depois, fui ao programa de Jô Soares, onde tentei explicar que não era bem aquilo.

AT | Caetano Veloso se manifestou?
RD -
Ele me deu um telefonema que não foi brincadeira, porque ele é muito cioso de sua reputação como artista e eu sempre fui um colaborador dele como artista e ele sempre respeitou muito minha opinião e para ele teria sido um choque eu negar o valor artístico dele. Na última entrevista que dei a A TARDE, um repórter tocou nesse assunto e me perguntou se eu estava me retratando. Eu disse: “Se alguma mal fiz a Caetano, uso essa matéria para pedir desculpas”. Ele me perguntou se eu estava me retratando, como se fosse algo absurdo. Eu disse que ficava feliz em me retratar porque eu mudei. Posso ter tido uma crise de inveja ou algo assim, mas, graças a Deus, já passou.

AT | O senhor é considerado um excelente designer, mas não tem formação nessa área. Como foi sua educação formal?
RD -
 Meu estudo formal foi informal (risos). E eu sou atípico, como meus estudos. Eu tive a formação chamada formal aqui na Bahia. Fiz o primário no Colégio Dona Afrísia, depois fui expulso do Antonio Vieira, aí fui para o Severino Vieira e depois para o Colégio Central, onde minha vida mudou completamente. Foi lá que conheci todo mundo: Glauber, Calasans Neto, a turma de Fernando da Rocha Peres. Aí, virei artista intelectual. Mas eu era um aluno meio relapso, repeti três vezes a segunda série ginasial porque preferia jogar futebol e ler meus livros. E, por conta dessas crises, não sei como, aos 20 anos, consegui uma bolsa de estudos do Ministério da Educação para ir para o Rio de Janeiro. Lá, fui fazer arte e educação.

AT | E como o senhor começou no design?
RD -
Não havia formação de design. No Rio, fiz um teste vocacional e dava que eu era bom para design. Fui estagiar com Aloísio Magalhães [designer pernambucano]. Ele estava nos Estados Unidos, voltando para o Brasil, e ia montar um escritório. Do estágio, me tornei membro da equipe e muitos cursos pioneiros de design surgiam nessa época. Um desses cursos que fiz foi o do Museu de Arte Moderna, onde fui aluno de Alexandre Wollner. Misteriosamente, acabei sucedendo Alexandre Wollner como professor do Museu. Nessa época, eu era professor, mas já era dissidente, devido à minha visão tropicalista. Isso era mais ou menos 1964, quando eu era militante da UNE. Aí, surgem os baianos no Rio de Janeiro, os tropicalistas, então eu já encaro a revolução tropicalista como designer, mas eu era um adversário da universidade, era crítico. Eu brincava, chamava universitário de universotários. Mas minha vida profissional foi seguindo. Fui editor da Editora Vozes, da esquerda católica, o que foi motivo de perseguição.

AT | Como foi a vida do senhor durante a ditadura militar?
RD -
Um dos textos mais importantes de meu livro é A grande porta do medo, que trata sobretudo deste assunto. Eu procuro narrar tudo isso. É um fato notório, tanto que hoje eu sou anistiado político por causa disso e eu perdi tudo, meu emprego, minha vida, passei anos internado em hospício, fui jurado de morte pelos militares... Fui preso na passeata manifestando contra a morte de um estudante, em abril de 68, quando eu tinha 29 anos. Aí, foi um baque total no tropicalismo. As torturas eram terríveis. Eu namorava uma mulher belíssima , extraordinária, chamada Ruth Casoy. Mas, no meio de uma dessas sessões de tortura, eu quase entrego ela aos militares. Eu gritava ‘Foi Ruth, foi Ruth’. Aí, eles paravam de me torturar e eu desistia de delatar.

AT | Quanto tempo o senhor passou na prisão?
RD -
Esta primeira foram dez dias, em vários lugares. Nós nunca ficávamos no mesmo lugar. Ficávamos o tempo inteiro de olhos tampados. Eu esqueci como era meu rosto e em todo o tempo não permanecia no mesmo lugar. Viajava horas de carro sem saber sequer se estava no Brasil. Não via nada, nada, nada. Às vezes, eu ficava sozinho numa sala, tirava rapidamente o tampão. Meu irmão, que é engenheiro, conseguiu fazer o mapa do quartel. Eu fiz um retrato de um dos torturadores. Foi isso que resultou na descoberta de quem era o torturador. Esse foi, inclusive, um dos mais belos trabalhos jornalísticos brasileiros contra a ditadura.

AT | Qual foi o comportamento da imprensa em relação a sua prisão?
RD - A grita da imprensa foi muito grande, houve manifestos de intelectuais, virei primeira página de todos jornais porque a gente [Rogério foi preso junto com o irmão, Ronaldo] era muito conhecido no meio artístico. Então, o meio artístico saiu em defesa. Tom Jobim, Chico Buarque, Baden Powell, todo mundo assinava “libertem os irmãos Duarte”. A prisão foi como um seqüestro. Nós já fomos dados como mortos. Durante a prisão, não tínhamos contato com ninguém, a ponto de eu chamar esse período de “desprogramação”.

AT | O senhor achou que ia morrer?
RD -
Achei, claro. Inclusive, os militares disseram que iam fuzilar a gente. E a gente ia morrer mesmo se não fosse a grita geral. Não estou exagerando não, mas a gente foi preso para ser morto mesmo. Era para ser um exemplo, era coisa para assustar a classe média. Mas a grita da imprensa foi muito, muito, muito, muito [fala com ênfase] forte mesmo. E a gente tinha relações importantes, como Josaphat Marinho, que era senador na época. Muita gente importante dizia: “Se vocês matarem esses caras, a barra vai pesar”. Foi averiguado que os militares tinham planos de nos matar e jogar nossos corpos no Rio Guandu, no Rio de Janeiro.

AT | Esse plano era mesmo concreto?
RD -
O plano era de exterminar a gente, não há a menor dúvida. Isso é historicamente comprovado. Mas numa conversa dos militares sobre a navegabilidade dos corpos, sobre se os corpos iam boiar logo ou tal, eles desistiram. Eu fiz aniversário na prisão. Nesse dia, eles destamparam meu olho e me deixaram comemorar de forma muito gentil. Fizeram bolo, ofereceram refrigerante e disseram: "É muito bom tomar uma Pepsi antes de morrer". Eu disse: “Tudo bem, você está certo, eu vou morrer de qualquer jeito”. Um oficial que usava o nome de guerra Artigas, com quem fiz amizade, disse: “Vocês são muito legais, mas aqui seguimos uma rígida disciplina e se tivermos a decisão de matá-los terá que ser feita”. Aí, eu pensei: “Cada macaco no seu galho, né?”.  Lembro de uma viagem de carro em que disseram: “Vocês não vão morrer. vou dar instrução de sobrevivência”.

AT | O senhor foi preso sozinho ou junto com amigos?
RD -
Olha, eu antes era mais modesto, mas agora eu digo, e não é para me gabar não: todo mundo voltou quando a barra pesou cercada pelo exército. O pessoal levava rolha para derrubar cavalo e colírio para enfrentar gás lacrimogêneo. Só quando eu fui cercado pela cavalaria, com muita bomba e tudo, é que tentei fugir. Mas aí fizeram uma armadilha e, quando eu estava chegando em meu carro, um cidadão me aponta um revólver e diz, baixinho: “Me siga sem falar ou então vai morrer agora”. Quando chegamos a um lugar, acho que era uma delegacia, dispensaram nossas namoradas, Ruth e Silvia Escorel, que namorava meu irmão. Aí, o cara disse : “Vocês vão ficar“.

AT | O senhor passou também um tempo em hospícios?
RD -
Depois da prisão, resolvi fazer a parte mais radical do tropicalismo, a base do movimento, que chamei de marginália e que rendeu um poema: ”No mapa da Guanabara é que leio a nossa sorte / azul a zona sul / morte na zona norte. Esse poema é um épico sobre o Rio de Janeiro. No Rio, viramos barra pesada. As portas foram sendo fechadas para a gente numa espécie de cerco. Acho que na casa do Oiticica um cara que eu não lembro bem quem era me disse: “Você só tem duas opções: ou polícia militar ou o Pinel (hospício do Rio)”. Eu havia tido uma experiência louca num filme que fiz com Luiz Gonzaga, em Exu, e durante a viagem houve um acidente terrível, o carro virou, as latas abriram, então, na volta da viagem eu já estava desgovernado. Eu não tinha alternativa, então fui para o hospício. Foram três internações: Pinel, Engenho de Dentro (com cabeça raspada)... tudo isso está no livro. Entre 68 e 70 foi esse período. O último hospício já foi uma coisa mais legal, no Hospital das Clínicas de São Paulo, recebi alta coincidindo com a volta de Caetano de Londres. Ele disse que queria me ver e tal...

AT | Foi durante a prisão que o senhor se aproximou da religião?
RD -
Na prisão, eu tive meu primeiro contato com o lado místico. Enquanto meu irmão lia livros de engenharia, eu lia a Bíblia. Aí, tive umas visões. Quando eu estava louco, fiz um Cristo de braços abertos com as mãos cortadas. Em vez do 'INRI' do crucifixo, no meu desenho estava inscrito 'INRIO', como se eu fosse o Jesus dessa época. Esse foi meu primeiro surto religioso. Foi aí que notei que a razão não me dava resistência para enfrentar aquele sofrimento. Porque quando você se vê numa situação dessas, você tem que compreender sua verdade suprema. Quando saí da prisão, me considerava bem místico.

AT | Antes de ser preso, o senhor era ateu?
RD -
Não. Eu era anticlerical. Mas não tenho uma religião, eu me defini como alguém que acredita em Deus, estou numa fase crítica, porque fui diagnosticado com neoplasia maligna, metástase, e tive que mudar todos os valores que eu tinha. Um certo ateísmo voltou muito forte, uma idéia de que as religiões às vezes são muito impuras.

AT | Quando o senhor soube que estava doente?
RD -
Neste ano, que me revoltei contra a medicina. Mas eu descobri que o ateísmo que apareceu em mim é uma espécie de religião muito forte. Se a morte tiver que vir, que venha, mas eu vou lutar pela vida muito fortemente. Então, mudei tudo: faço ginástica todo dia de manhã, de tarde, de noite, uso uma alimentação especial e nada da medicina tradicional. Nada, nada, nada. Descobri que a doença é fruto de más ações: você maltratou seu corpo e ficou doente. Maltratou o corpo usando drogas, comendo carne, uma série de coisas que faz mal, uma alimentação doentia, muito tóxica, que cria problemas no intestino e aparece como o que eles chamam de câncer.

AT | O senhor se arrepende de ter lutado contra a ditadura?
RD -
Como eu vou me arrepender se já passou? Não é mais hora de arrependimento. Eu não sei se me arrependo, mas essa idéia de se arrepender é estranha. Ninguém se arrepende por algo que nós acreditamos ter sido digno. A gente se arrepende de algo indigno. Foi um ato temerário, mas não indigno. Me arrependo de maldades, mas disso não.

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