ARTES CÊNICAS
Peça gratuita em Salvador expõe ambição e manipulação no Brasil
Espetáculo brechtiano ‘Homem é Homem’ volta aos palcos de Salvador para nova temporada

Por Maiquele Romero

A Companhia de Teatro da Ufba estreia nesta sexta-feira, 3, sua 59ª montagem com a comédia Homem é Homem, de Bertolt Brecht, que fica em cartaz até 26 de outubro no Teatro Martim Gonçalves.
Dirigido por Caio Rodrigo e Pedro Benevides, o espetáculo dá continuidade à tradição da Escola de Teatro da Ufba de apresentar textos do dramaturgo alemão, sempre dialogando com questões sociais e políticas do presente.
Escrito na década de 1920, o texto de Brecht acompanha a trajetória de Galy Gay, um estivador que, por não conseguir dizer não, é levado a assumir a identidade de um soldado britânico.
A cada cena, o protagonista se molda às circunstâncias e perde gradualmente a própria individualidade. A narrativa expõe como estruturas autoritárias e sistemas de poder podem transformar e substituir pessoas com facilidade.
Para o diretor Caio Rodrigo, a peça ganha novo fôlego no Brasil contemporâneo. “O contexto político devolve à encenação o sentido de uma alegoria da guerra cultural, apontando as consequências da razão instrumental que é, ao mesmo tempo, causa e efeito das tendências totalitárias”, afirma.
Embora o espetáculo seja marcado pelo humor, Caio lembra que o riso nunca é gratuito: “Homem é Homem é uma comédia e também por isso faz aparecer os traços trágicos associados à manipulação e ao oportunismo e constituintes das relações sociais”.
Segundo ele, essa dimensão crítica ressoa ainda mais em contextos de desigualdade e de precarização das relações de trabalho. O enredo também aponta para as ilusões do empreendedorismo individual e da promessa de ascensão social via esforço próprio.
“As promessas de ascensão social com base num empreendedorismo individual geralmente não levam em conta os diferentes contextos sociais e também mascaram ou buscam diminuir as funções do Estado”, destaca o diretor.
Ascenção Social

No palco, quem dá vida ao ambicioso e maleável Galy Gay é o ator Lúcio Tranchesi (O trem que nos leva). Para ele, o papel é um mergulho intenso nas contradições humanas.
“Esse é um personagem fascinante por toda a trajetória dele. É um homem que não sabe dizer não... ele se transforma realmente num soldado cruel, num soldado que só quer cumprir a missão dele e ganhar um novo status”, relata Tranchesi.
O ator aponta paralelos diretos entre a peça e o Brasil atual. “Podemos ver em muitas pessoas hoje essa ambição desenfreada e, a qualquer custo, se faz qualquer coisa para ter ascensão social”, afirma.
Apesar do contexto da Primeira Guerra Mundial, a atriz e professora Hebe Alves, que interpreta Leokadja Begbick, também observa como a peça ecoa nos dias de hoje: “O ponto de conexão é essa discussão sobre as guerras que servem a propósitos políticos e econômicos, dizimando populações e subjugando povos vulneráveis”.
Formação de público

Além da encenação, o projeto ‘Brecht é Coisa Nossa’ amplia a proposta artística com oficinas gratuitas em diferentes pontos de Salvador. “O principal intuito é descentralizar e difundir técnicas agenciadas no processo de criação para que os debates propostos na poética de encenação encontrem capacidade de desenvolvimento nas poéticas contemporâneas”, explica Caio Rodrigo.
No total, são quatro oficinas gratuitas: Práxis Teatral e suas Raízes Visuais: Estratégias de Composição da Iluminação do Espetáculo Homem é Homem, de Bertolt Brecht (com Eduardo Tudella e Pedro Benevides, Espaço Boca de Brasa Subúrbio 360 – dia 06/10).
Elocuções em Trânsito: Dinâmicas da Voz para uma Atriz Narradora (com Hebe Alves, no Teatro Martim Gonçalves dia 13/10); Entre o Ator e a Personagem (orientada por Lúcio Tranchesi, no Espaço Boca de Brasa Centro – 21/10); (DES)MONTAGEM: estratégias de encenação e direção de elenco no espetáculo Homem é Homem (com Caio Rodrigo, na Casa Preta Espaço de Cultura - 27/10).
As oficinas oferecem ao público não apenas contato com os fundamentos do teatro brechtiano, mas também a chance de refletir sobre como essas ferramentas críticas podem dialogar com a cena atual.
Além disso, Caio explica que “as oficinas em diferentes territórios da cidade buscam também promover trocas com a gama diversa de artistas e técnicos das artes cênicas soteropolitanas”.
Essa dimensão da acessibilidade e promoção do acesso para diferentes artistas atravessa toda a concepção do evento, que passa por um processo qualificação para atender o público com deficiência, por meio de uma consultoria em acessibilidade com a especialista em acessibilidade Nathália Rocha.
Tradição e modernidade

Criada em 1956, a Escola de Teatro da Ufba foi a primeira instituição de nível universitário dedicada à formação teatral no Brasil. Desde então, tornou-se referência nacional na articulação entre ensino, pesquisa, extensão e criação artística.
A temporada gratuita no Teatro Martim Gonçalves busca democratizar o acesso ao teatro e reafirma o papel da universidade como espaço de difusão cultural. Com humor e crítica, Homem é Homem convida o público a rir e, ao mesmo tempo, a refletir sobre os mecanismos de poder que moldam indivíduos e sociedades.
A montagem mostra como um texto escrito há 100 anos segue atual ao questionar hierarquias, guerras e ilusões de progresso, propondo que o riso seja também um gesto de consciência política. Mais informações no Instagram @teatroterceiramargem.
Homem é Homem / 03 a 26 de outubro / Teatro Martim Gonçalves, Canela / De sexta a domingo às 19h30 / Entrada gratuita (senhas distribuídas presencialmente 1 hora antes do espetáculo).
Siga o A TARDE no Google Notícias e receba os principais destaques do dia.
Participe também do nosso canal no WhatsApp.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes