HQ
Pinturas de Guerra, de Ángel de la Calle, retrata o fascismo
HQ cria boa ficção a partir da dantesca realidade latino-americana, seus ditadores e artistas perseguidos
Por Chico Castro Jr.
Agora que todo mundo está vendo os filhotes que a cadela do fascismo pariu recebendo até perdão presidencial por atacar a democracia (em breve haverá medalhas), uma leitura que vem a calhar para os fãs de quadrinhos é Pinturas de Guerra (Veneta), do espanhol Ángel de la Calle, autor de Modotti - Uma Mulher Do Século XX.
E assim como nesta outra HQ, publicada no Brasil em 2008, Ángel centra sua narrativa em personagens obscuros reais que transitaram entre a arte e o combate ao fascismo. Se em Modotti ele fechou o foco na trajetória da italiana Tina Modotti – fotógrafa, modelo, atriz e ativista política revolucionária – em Pinturas de Guerra o quadrinista partiu para uma proposta mais ambiciosa, costurando pelo menos duas tramas que correm paralelas com vários personagens (que podem ou não ser reais), ambientada nos anos 1970, primeiro em Santiago do Chile e depois em Paris, mas que na parte final se derrama por diversas capitais da América do Sul, então sob as botas de ditadores militares.
A introdução, na capital chilena, é de arrepiar e vale ser descrita rapidamente. Em 1976 (ou seja, três anos após o golpe militar de Pinochet), em uma luxuosa casa de um elegante subúrbio de Santiago, Felipe Rosas, um crítico de arte, comparece a um jantar na casa de Natalia, artista plástica e socialite, casada com um americano do Texas, Steve Rogers (evidentemente a coincidência do seu nome com o da identidade civil do Capitão América não é coincidência).
Lá, Felipe conhece uma bela argentina, Esperanza Delicada, com quem troca algumas ideias, além de outros artistas, galeristas, jornalistas e intelectuais. A princípio, tudo parece tranquilo e normal, com muito “champanhe e cicuta com comentários inteligentes”.
Aos poucos, porém, o clima terrível que pairava na época vai surgindo nas conversas, com alguns convidados lamentando o “sumiço” deste ou daquele artista, enquanto um galerista chega a declarar que “Eu também não gosto dos milicos, mas temos que reconhecer que agora o país funciona” etc. De vez em quando, as luzes se apagam, mas logo voltam.
Felipe então resolve ir ao banheiro. Desce uma escada, entra por uma porta, segue por um corredor, abre outra porta e... eis que descobre uma câmara de torturas no subsolo da casa. Quatro pessoas estão amarradas nuas das formas mais desumanas possíveis, com sacos nas suas cabeças.
Logo ouve vozes vindo do quarto anexo: são dois torturadores, em um intervalo do “serviço”, contando vantagens um para o outro sobre como massacram seus interrogados sem dó, graças às técnicas que “Steve” da CIA lhes ensinou. As falhas elétricas na casa eram resultado dos choques aplicados nas genitálias dos prisioneiros com a picana, um instrumento de tortura. Apavorado, Felipe sai dali correndo, retorna à festa, logo se despede de todos e vai embora.
Apenas a paisagem
Corta a cena e somos levados à Paris, onde passamos a acompanhar o artista espanhol Ángel de la Calle, que foi à cidade investigar a vida e a morte da atriz norte-americana Jean Seberg, imortalizada por Jean-Luc Goddard em sua revolucionária obra de estreia, Acossado (A Bout de Souffle, 1959), entraria na lista negra do mccarthismo e morreria em circunstâncias misteriosas.
No condomínio em que vai morar, Ángel passa a conviver com uma miríade de artistas latino-americanos exilados de seus países, além dos próprios franceses e outros europeus.
A partir daí, Ángel tece uma intrincada trama que se espraia por diversos países golpeados pelo fascismo fardado, envolve seus arapongas (espiões), artistas e guerrilheiros revolucionários, misturando ficção e realidade.
Ao final, ecoam as palavras de Marga, a artista argentina brutalmente torturada: “A guerra contra os milicos é interminável. Querem nosso extermínio e não vão permitir que ninguém escape. Nós, que acreditávamos ser o país, e éramos apenas a paisagem”.
Serviço
O quê: Pinturas de Guerra / Ángel de la Calle / Veneta/ Tradução: Andréa Bruno / 312 p.
Preço: R$ 64,90
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes