FLUTUANTE BABEL
‘Retrato de um Certo Oriente’, de Marcelo Gomes, adapta com maestria obra de Milton Hatoum
Comemorando os vinte anos da produtora Matizar Filmes
Por João Paulo Barreto
Quando os personagens de Retrato de um Certo Oriente, novo filme de Marcelo Gomes, diretor de Joaquim (2017) e de Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), e que é baseado no livro Relato de um Certo Oriente, do escritor Milton Hatoum, se encontram prestes a se confinar em um barco que cruzará o oceano Atlântico saindo do Líbano em direção ao Brasil, o filme nos traz alguns depoimentos de pessoas que estão fugindo dos conflitos naquele período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial.
São pessoas que, em seus variados idiomas, falam de anseios e desejos em alcançar uma vida melhor para seus filhos, uma vida diferente da que eles tiveram. Pessoas que falam que aguardam a volta de entes queridos, que deixaram o país na esperança de uma melhora, mas que esse horizonte não se concretizou. Em outro momento, vemos um palestino falar sobre sua expulsão de seu país e de sua tentativa frustrada de uma vida melhor no Líbano.
As falas se entrecruzam em vários idiomas diferentes, como a mulher que fala em francês de como se recorda das chamas oriundas dos bombardeios nazistas; a polonesa que lamenta ter perdido sua família, sendo aquele o dia mais triste de sua vida e que sua existência, agora, será longe de país natal. Ou o italiano que, escapando das ruínas deixadas por Mussolini, enxerga sua ida ao Brasil como sua última esperança. São momentos como esses que entregam para o espectador a principal reflexão relacionada à incomunicabilidade e à intolerância que a obra traz.
Elipses de amadurecimento
Dentre os presentes ali, estão os irmãos Emilie e Emir, libaneses que embarcam naquele mesmo navio em direção ao Pará. Fugindo de um conflito iminente no Líbano, os dois entram no navio que representa aquele encontro de diversas pessoas que buscam pelo básico em suas vidas. Naquela reunião de pessoas oriundas de diversas línguas, de diversos países, uma confluência se forma, a mesma confluência que será vista e vivida por eles já em solo amazônico.
No filme, a passagem das elipses temporais dentro do barco são acertadamente desenhadas pelas mudanças comportamentais de seus personagens naquele espaço confinado. Emilie passa a aprender o idioma português com Omar, comerciante mulçumano que já possui passagens prévias pelo Brasil e afinidade com a língua, e por quem a jovem se apaixona, gerando, assim, o conflito familiar do filme entre ela, seu amado e seu irmão, que não concorda com o romance. Pesa na decisão de animosidade de Emir a crença de que foram os mulçumanos os responsáveis pelo conflito no seu país.
“Eu tive muitas conversas com Milton (Hatoum). Viajamos para Manaus e para Belém juntos, e ele dizia para mim algo que me impressionou muito. Ele dizia que Manaus, no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, parecia uma babel de línguas. Existiam pessoas de todos os lugares do mundo e pessoas de várias regiões da Amazônia que falavam outras línguas. Era uma grande Babel", comenta o diretor e roteirista Marcelo Gomes ao jornal A TARDE.
No desafio de transpor para as telas tão complexa estrutura literária, o diretor propôs uma alteração que deu ao seu filme um estrutura totalmente diversa do livro. "Quando ele me contou isso, eu fiquei imaginando como construir essa babel de línguas. O livro se passa todo em uma casa. E eu decidi transformar, de uma forma ou de outra, a casa em um barco. Nessa viagem, os dramas que acontecem dentro da casa foram colocados dentro de um barco e, nele, busquei construir essa babel de línguas que começa ali e vai até a Amazônia", pontua o cineasta.
A partir da metáfora existente na reunião de pessoas oriundas de diversas culturas e idiomas, Gomes construiu uma estrutura de análise histórica que avança até os dias de hoje. "Essa foi uma ideia fundamental para mim. Trazer essa babel de línguas que é realmente verdadeira. E era maravilhoso. Porque o que acontece no filme, esse encontro de culturas, já aconteceu no ensaio. E várias cenas do ensaio, eu levei para o filme. Agora, estudando a história do Líbano, você descobre que todos esses conflitos que existem no Oriente Médio começam na nos anos 1940. E esses conflitos estão muito presentes. E a questão indígena, da terra indígena, acontece desde que os portugueses invadiram o Brasil. Então, o que eu quis, na realidade, porque o filme se passa no final do anos 1940, era refletir uma situação atual. Porque o artista, de uma forma ou de outra, é tocado pelos grandes acontecimentos do mundo atual. E eu gosto sempre de colocar esses acontecimentos dentro dos meus filmes de época. É sempre assim", define Marcelo.
Utopias de fé
Com Retrato de um Certo Oriente, Marcelo Gomes e Milton Hatoum oferecem ao seu público uma reflexão que perpassa todo o século XX e permanece, infelizmente, neste 1/4 de século atual. O diretor explica: "Todos esses personagens foram expulsos das suas casas por questões raciais e políticas e estão à deriva no mundo, sejam os libaneses sejam os indígenas ribeirinhos da Amazônia, que são expulsos de suas terras. Então, eu achei que ali tinha um elemento muito importante para a gente refletir sobre o mundo hoje. O que o mundo vive nesse momento? Vive um momento de ódio, de intransigência, de preconceito religioso. E a maioria das guerras são sobre isso. Ninguém me tira da cabeça que não são sobre preconceitos religiosos. São sobre poder, dominação e dinheiro”.
“Então, eu acho que ali era o momento de fazer essa reflexão. Ali naquele porto, onde tem aquelas pessoas indo embora por conta guerra. Era o momento de fazer a reflexão. Ali no barco, onde você vê os europeus fugindo da miséria da Segunda Guerra, era o momento perfeito para apresentar aquilo. Quando a gente vive uma situação onde a Europa, que foi sempre uma região de pessoas que migraram para vários lugares do mundo, é reativa a qualquer tipo de imigração que acontece lá. E quando chega na Amazônia, a mesma coisa, a mesma questão da terra", define Gomes.
O cineasta salienta também a liberdade de escrita do roteiro na adaptação da obra de Hatoum.
“Eu achei que ali seria o momento ideal para falar disso. No livro não tem isso. Mas eu tomei a liberdade poética de construir esse momento. E esse momento culmina naquela cena que, para mim, é o momento da utopia do filme, onde está o Omar, o personagem mulçumano rezando do lado da aldeia, e do outro lado da aldeia indígena está Emilie rezando para o seu deus, e, entre os dois estão os indígenas rezando para os seus deuses. E naquela arena, todo mundo se respeita”, afirma.
“Todo mundo tem espaço para rezar para o seu deus. E não tem nenhum tipo de conflito. Então, talvez a população originária da Amazônia tenha que ensinar isso ao mundo. Ensinar essa aceitabilidade das pessoas, não importa em que deus elas acreditem e de que cultura elas são. Porque quando os libaneses chegam na aldeia, ninguém pergunta a eles de onde eles são e em que deus eles acreditam. Então, talvez, os povos originários estejam aí para nos dar essa lição para o mundo inteiro", finaliza o cineasta.
Retrato de um Certo Oriente / Diretor: Marcelo Gomes / Com Wafaa Céline Halawi, Charbel Kamel, Zakaria Kaakour, Eros Galbiati, Francisco Di Franco, Tuna Dwek, Rosa Peixoto / cinema.atarde.com.br
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