CULTURA
Sanfona erudita e popular
Por Claudia Lessa, do A Tarde
Concertina, harmônica, cordeona, acordeom, pé-de-bode, gaita, fole. Tantos nomes, e outros mais, para designar um único instrumento: a sanfona. Expressão de uma cultura, remete ao Nordeste, a Luiz Gonzaga. Ele, o Rei do Baião, permanece intocável no posto de maior propagador do instrumento no País.
Com uma trajetória de mais de 3 mil anos percorrendo oceanos e mares europeus, até chegar a solo brasileiro, a sanfona invadiu terras gaúchas, penetrou no Pantanal, deu o ar de sua graça em São Paulo e se estabeleceu na caatinga nordestina como ícone de sua cultura.
Mas, ao contrário do que ficou estigmatizado, a sanfona vai muito além do ritmo do forró. Eclético e arrojado, o som do instrumento está presente também em orquestras sinfônicas e no trabalho de nomes como o consagrado músico erudito italiano Mirco Patarini e o multi-instrumentista Hermeto Pascoal.
Festival – É justamente na versatilidade do acordeom que o I Festival Internacional da Sanfona pretende focar sua programação, inteiramente gratuita, incluindo palestras, shows e oficinas. O evento, que tem início nesta segunda, acontece até sábado, em Juazeiro-BA e Petrolina-PE.
A história e a evolução da sanfona, ao longo dos séculos, também serão resgatados no festival. Estarão lá alguns de seus mais autênticos representantes, como Dominguinhos e o citado Mirco Patarini.
Dois mestres da sanfona serão homenageados: Luiz Gonzaga, inventor do baião, e Sivuca, que, demonstrando a universalidade da música do Nordeste, transformou o baião em jazz.
“É uma homenagem das mais justas a dois grandes nomes da música nordestina, Sivuca e Luís Gonzaga. Como parceira de música e companheira de vida de Sivuca, sinto-me honrada com essa lembrança. E como nordestina e brasileira, sinto-me feliz com essa iniciativa”, declarou a cantora e compositora Glória Gadelha
Majestade – No próximo 2 de agosto, fará 20 anos que Gonzagão aposentou o acordeom e foi descansar no céu. O legado de sanfoneiro e inventor do ritmo cunhado no codinome majestoso rende permanentes pesquisas, teses acadêmicas, eventos de resgate e comemorativos à arte de tocar sanfona.
Impossível falar do instrumento, no Brasil, sem ressaltar a figura de Luiz Gonzaga. Afinal, foi o filho de Januário que, ao inventar o ritmo do baião, nos anos 40, provocou uma onda de sanfoneiros no país.
Na orelha do livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga (Dominique Dreyfus), o crítico Tárik de Souza ressalta o fato de o Rei do Baião ter criado o trio instrumental básico do gênero. Ao lado da zabumba, usada como surdo e contrabaixo, e o triângulo “tilintando nos agudos dos compassos binários“, a sanfona vem “resfolegando o fole, segurando a melodia e a harmonia”.
“Luiz Gonzaga criou, na sanfona, um estilo muito próprio, fazendo as melodias nos ritmos que inventou. Ninguém tocava se acompanhando com a cadência que ele fazia“, considera Dominguinhos, que, com sua simplicidade nata, prefere dizer que é um “seguidor mais próximo“ do véi Lua ao ser chamado de seu sucessor.
Ritmos e estilos – A sanfona, instrumento caro e pesado, se adapta aos mais diversos estilos musicais. Nomes como Renato Cigano e Oswaldinho do Acordeom, por exemplo, já apresentaram, juntos no palco, suas distintas vertentes.
O primeiro mostrou a técnica e o virtuosismo europeus adaptados aos mais variados ritmos e estilos brasileiros. O outro registrou, ao vivo e em discos, a sua maestria no instrumento que o permite tocar desde Piazzola e Beethoven até MPB, além de música nordestina.
Já Renato Borghetti e Zé Calixto, ambos na "sanfona de botão", trazem uma variação sonora do instrumento, que se difere pela ausência do teclado e pelo efeito mais percussivo. O paulista Toninho Ferragutti, por sua vez, alia choro, forró, gafieira e chamamé (ritmo aparentado ao forró, difundido no Mato Grosso).
Resgate – Dominguinhos, sanfoneiro dos melhores do mundo, com domínio de técnicas das sanfonas de 48, 80 e 120 baixos, no alto da experiência de 50 anos de carreira, considera que, de uns cinco anos para cá, a sanfona está voltando a ter prestígio.
"Atualmente, temos um manancial de jovens tocando muito bem. A sanfona está muito bem resgatada", considera.
Abastecido de livros e discos que trazem a sanfona como protagonista, o mercado oferece registros valorosos que atestam a importância da sanfona para a preservação da memória musical brasileira. É o caso do CD Cada um Belisca um Pouco (Biscoito Fino), uma celebração da sanfona, no qual tocam Dominguinhos, Oswaldinho do Acordeom e Sivuca.
Eternizada na história, a obra de grandes mestres dá conta da importância da sanfona para a formação da alma musical nacional.
História secular de origem italiana
Instrumento harmônico e melódico, a sanfona tem origem italiana. Criada e patenteada por Cyrillus Demian, em 1829, a projeção e popularidade do instrumento se deram em 1864, por Paolo Soprani. Foi ele quem montou uma fábrica pioneira de acordeons, na Itália.
Somente no final do século XIX é que o acordeom aportou no Brasil, trazida por imigrantes alemães e italianos. Pelas mãos de Luiz Gonzaga ganhou visibilidade nacional. Em meados da década de 50 teve seu apogeu.
O primeiro acordeão que chegou no Brasil veio nas caravelas de Cabral e era chamado de concertina (com 120 baixos). A sanfona tornou-se popular principalmente no Nordeste, Centro–Oeste e Sul do Brasil. Os primeiros gêneros tocados (fado, valsa, polca, bugiu, caijun) retratavam o folclore dos imigrantes portugueses, alemães, italianos, franceses e espanhóis.
Particularmente no Nordeste, a sanfona se tornou maestrina do então novo ritmo do forró no início do século XX, com a construção da malha ferroviária brasileira pelos ingleses.
Nos anos 80, com o surgimento de uma nova estética na música brasileira, a sanfona perdeu espaço para o trio guitarra-baixo-bateria.
A revalorização da música regional (em especial os ritmos nordestinos) veio à tona nos anos 90, com o chamado forró universitário. Com ele, os sanfoneiros ganharam fôlego e a juventude tomou pé de uma cultura até então ignorada por uma geração de influência rocker.
Tipos – Modismos à parte, o som da sanfona, nascido na Europa e, no Brasil, eternizado por Luiz Gonzaga, tem em clássicos como Asa Branca (dele e Humberto Teixeira) uma herança imortal.
Existem dois tipos básicos de sanfona: a com teclado de piano e a gaita-ponto, com botões no lugar das teclas, também denominada gaita-de-botão, típica no Rio Grande do Sul. O acordeom de 120 baixos se popularizou como sanfona no Nordeste.
“Mas a verdadeira sanfona é aquele instrumento menor, de oito baixos, onde abrindo o fole é uma nota e fechando é outra, ensinada de pai para filho, conhecido no interior do Nordeste como pé-de-bode ou concertina e, no Sul do País, como gaita-ponto“, ensina o mestre Oswaldinho do Acordeom.
O som da sanfona, explicam os mestres, é criado forçando o ar do fole por entre duas palhetas (localizadas no chamado castelo, dentro do fole), que vibram mais grave ou agudo de acordo com a distância entre elas (quanto mais distantes, mais grave). Quanto mais forte o ar é impulsionado, mais alto é o som.
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