Suzy King rompeu os padrões femininos da época e se lançou ao estrelato | A TARDE
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Suzy King rompeu os padrões femininos da época e se lançou ao estrelato

Publicado segunda-feira, 25 de outubro de 2021 às 06:00 h | Autor: Eugênio Afonso
A história da artista baiana Suzy King é contada em biografia | Foto: Acervo Última Hora RJ
A história da artista baiana Suzy King é contada em biografia | Foto: Acervo Última Hora RJ -

O destino da baiana Georgina Pires Sampaio já estava traçado. Ser uma mulher casada, mãe, dona de casa e, muito provavelmente, evangélica ou missionária batista. Enfim, uma mulher comportada, prendada, do lar.

Até porque ela nasceu na primeira metade do século passado e esse era o caminho natural de nove entre dez seres do sexo feminino até então.

Mas esse estilo de vida não combinava com a moça que, para escapar do óbvio, fugiu ainda adolescente para ser famosa na cidade grande. Pois é, Georgina, que depois viria a se tornar Diva Rios, Suzy King, Jacuí Japurá e, por fim, Jackie Bailey, correu mundo.

Saiu do interior da Bahia – um povoado perto de Jequié – para se tornar cantora, atriz, faquiresa, vedete, dançarina exótica, encantadora de serpentes e o que fosse necessário para estar em evidência, preferencialmente nas manchetes dos jornais, entre as décadas de 1930 e 1960.

De ilustre desconhecida, a despudorada Georgina passa a ter sua curiosa trajetória artística, focada sobretudo na autopromoção, esmiuçada na biografia Suzy King, a pitonisa da modernidade, de autoria dos historiadores e produtores culturais Alberto Camarero e Alberto de Oliveira.

Apaixonados pelo universo burlesco brasileiro, os Albertos pesquisaram profunda e minuciosamente, durante oito anos, os dados e fatos dessa baiana transgressora que fugia completamente aos padrões de comportamento da época.

Esfinge da contracultura

Sempre fascinada pela notoriedade, Georgina saiu do interior para tentar a sorte no meio artístico das grandes cidades. Foi mãe solteira e acabou sendo uma precursora do enfrentamento ao comportamento machista, já que era uma mulher independente, iconoclasta, senhora de seu destino e ousada para qualquer época. Sempre foi uma criatura inquieta, uma mulher à frente do seu tempo, uma feminista sem a real consciência da militância.

Quando passa a morar em Copacabana, no Rio de Janeiro, já nos anos 1940, disposta a se tornar uma das principais vedetes do bairro, adota o exótico nome de Suzy King. Como não era dotada de grande beleza nem talento, acabava aparecendo mais por suas arruaças e pendengas com locatários, vizinhos, imprensa, censura, delegacias de polícia e outros artistas do que por sua própria capacidade de impressionar e encantar o público.

De fato, Suzy esteve uma boa dezena de vezes estampada nas páginas dos jornais, mas geralmente nas colunas de escândalo ou nas seções policiais. Algumas vezes porque as enormes cobras que criava em casa, chamava de companheiras e dizia que eram simples minhocas inofensivas, escapavam para os apartamentos vizinhos.

E assim foi a vida da marginalizada Georgina, se embrenhando de canto em canto, sempre em prol de alcançar alguma fama. Na década de 1980, depois de buscar o sucesso artístico durante anos, sobretudo como cantora, faquiresa e encantadora de serpentes, se apresentando até no exterior, Suzy foi encontrada morta, mais precisamente em agosto de 1985, com presumíveis 68 anos (sua idade sempre foi um mistério), solitária dentro de um trailer, em Chula Vista, condado de San Diego, Califórnia (EUA).

Muitos anos depois, mais precisamente entre 2019 e 2020, para encantamento geral, a vida de Suzy acaba virando um longa-metragem com o documentário A senhora que morreu no trailer – dirigido pelos Albertos.

Georgina, que sempre quis, mas nunca conseguiu trabalhar em um filme, acabou tendo sua aventureira história real transformada em roteiro para cinema com direito a Divina Valéria e Helena Ignez no elenco.

Figuras transgressoras

Mas nem só de Suzy King vive o livro. Ela é, de fato, a protagonista, mas para contextualizar o período vigente na época, outras figuras, digamos, ‘bizarras’ e impagáveis passeiam pela obra.

O leitor vai conhecer também a faquiresa Verinha, Lili, a vedete anã, Eros Volúsia, Dalva Eirão, Carmen Brown, Luz del Fuego, Elvira Pagã, Angelita Martinez, Príncipe Igor, Índia Maluá e tantos outros.

O livro tem um formato maior do que o padrão – parece um livro de fotografia – com páginas de cores diferentes e capítulos independentes. Inclusive, os Albertos brincam com cores, tamanhos e modelos das fontes. Bastante ilustrado, traz fotos em branco e preto e coloridas. Lembra um almanaque, mas, nesse caso, monotemático.

A edição e a diagramação até parecem confusas diante de tantas alternativas de modelos de página. No entanto, o formato escolhido pelos autores tem o objetivo de nos aproximar e, de forma entrecortada e descontínua, nos fazer mergulhar no universo conturbado, caleidoscópico, lúdico e transgressor que foi a vida múltipla de Suzy King. A ideia é entender um pouco mais essa gente rebelde, marginalizada e que nunca acata norma predeterminada a não ser a do desejo pessoal.

Com um trabalho de pesquisa primoroso, os Albertos conseguem fascinar o leitor, afinal encontrar informações de uma subcelebridade que viveu seu apogeu em meados do século passado não deve ter sido tarefa fácil. Mas o leitor agradece o empenho porque, além de passar a conhecer Georgina/Suzy, passa também a admirá-la e torcer por essa anti-heroína destemida.

No prefácio do livro, o psicanalista Paulo Prospero, sabiamente diz: “São os rebeldes que nos trazem o novo e a liberdade existencial, aqueles que fazem a sua própria trilha sonora e apesar de todas as impossibilidades, a colocam nas paradas de sucesso. Acreditam mais no seu desejo do que no desejo do outro... enquanto a grande maioria de escravos da cultura se arrasta pela poeira do tempo, esses anjos do desejo se encontram na multiplicidade dos sonhos”.

Há somente um porém na biografia: alguns textos são excessivamente longos, como o do final, escrito pela antropóloga e atriz Regina Müller, e o que narra os encontros de Alberto de Oliveira com Carlos, filho de Suzy. Eles fogem do perfil mais sintético de almanaque que a obra se propõe, mas não chegam a desqualificar a leitura.

Suzy King, a pitonisa da modernidade é um livro que tenta resgatar, também, o pouco documentado e valorizado – hoje quase extinto – universo burlesco brasileiro

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