ESTREIA
Tempo de despertar
Uma ruidosa denúncia contra a violência machista, As Órfãs da Rainha capta a Inquisição na Bahia do século XVI
Por João Paulo Barreto | Especial A TARDE
Existe um elemento imprescindível no Cinema que é a sua capacidade de transportar sua audiência para o universo no qual a trama de um filme se passa. Uma vez que a união de elementos como roteiro, direção, direção de arte, figurino, música e atuações entrem em uníssono, o modo como se torna perceptível esse elemento, essa citada capacidade da obra de locomover seu público para seu espaço fílmico, é recebida pelo espectador atento com regozijo. Conseguir tal intento não é fácil, porém. Requer paciência, treino, dedicação e um olhar apurado de pessoas que são chave em uma produção cinematográfica.
As Órfãs da Rainha, novo filme da cineasta Elza Cataldo, que conta com a Direção de Arte de Moacyr Gramacho, é um exemplo dessa conjunção feliz de fatores.
Situado no Recôncavo Baiano do século XVI, o longa capta de modo extremamente orgânico essa capacidade do Cinema de nos colocar junto aos seus personagens.
Seja por texturas palpáveis de elementos de cena, bem como pelo uso consciente de silêncios de maneira a criar uma atmosfera mais intimista, ou pela carga dramática envolvendo os arcos e traumas de suas figuras centrais, As Órfãs da Rainha concebe essa sensação para o público em uma identificação natural com os dramas e dores de suas três protagonistas, nos envolvendo nos pungentes aspectos femininos de sua trama.
Escrito pela própria diretora Elza Cata ldo, em parceria com Pilar Fazito e Newton Cannito, o filme apresenta em sua abertura as irmãs Leonor (Letícia Persiles), Brites (Rita Batata) e Mécia (Camila Botelho), que são enviadas pela rainha de Portugal para o Brasil colônia no intuito de se casarem.
O duro choque de realidades, juntamente ao ambiente machista e patriarcal, repleto de violência sexual oriunda de uma masculinidade tóxica, torna aquela jornada um calvário para as três jovens. E isso é algo que se amplia exponencialmente com a chegada da inquisição religiosa e suas perseguições.
Em sua pesquisa sobre a inquisição no Brasil, Elza, que além de diretora e roteirista, foi professora da UFMG e defendeu sua tese de doutorado em Sorbonne, na França, mergulhou em um longo período de estudos. O resultado é de uma precisão e cuidado perceptíveis na abordagem religiosa tanto dos aspectos católicos quando judaicos.
“Há quase dez anos, eu me deparei com um verbete em um livro, o Dicionário do Brasil Colonial, do Ronaldo Vainfas”, relembra Elza. “O verbete era sobre as órfãs da rainha. Achei um título instigante. Com isso, comecei uma longa pesquisa sobre a inquisição. Tive que ir à Espanha, a Portugal, e morei na Bahia por quase dois anos para me inteirar, porque a inquisição, factualmente, chega a Salvador e, depois, vai para o Recôncavo. É um tema muito complexo, com três protagonistas e várias camadas de história, de narrativa. Com isso, eu tive que realmente mergulhar naquele contexto histórico para que pudesse retirar dele um drama histórico ficcional”, pontua a cineasta.
Violência e reflexão
Na história, o trio de roteiristas aborda aspectos denunciatórios de um período no qual a mulher era vista como mercadoria, como algo pertencente ao homem em vários aspectos. E nesse sentido, o filme traz de maneira densa a questão das violências pelas quais passam aquelas personagens. E é em uma cena densa e dolorosa que um estupro é colocado em destaque.
Como diretora, Cataldo destaca seu cuidado em abordar o momento. “Eu me aproximei daquelas mulheres em um sentido muito visceral. Queria muito entender o que elas sentiram com essa relação com o homem, com a questão feminina, com a questão da violência contra a mulher, o que elas sentiram ao passar aquilo. Procurei através de cada uma delas, em situações bem diferentes, o que elas poderiam ter vivido”, destaca Elza.
A cena em questão traz uma opção crucial de ângulo de câmera, com um plongée (quando a imagem é captada de cima para baixo) que lhe concede uma aspereza ainda mais brutal, mas nem um pouco gratuita. “A Brites, com um marido violento que retrata os homens com essa masculinidade tóxica, com a questão do patriarcado, com a questão da posse sobre o corpo da mulher. Ela se submete àquilo por acreditar que aquela era a sua missão, que era o papel, o trabalho dela. Aquilo que a igreja católica queria e que ela se imbuiu e foi com aquilo até o final, por mais sofrido que tenha sido. A cena do estupro, o plongée, era uma tentativa de mostrar ela. Não me interessava ver a crueza, a violência especificamente daquele homem. Eu queria entender sobre ela, a partir do seu olhar, o que estava acontecendo ali no corpo dela. Por isso eu fiz um plongée”, detalha Elza.
Direção de arte azeitada
A citada precisão na reconstituição de época, a partir da Direção de Arte de Moacyr Gramacho, também é um destaque de As Órfãs da Rainha, algo que, nesse uníssono de ideias, conseguiu captar essa necessária organicidade e rimar a Arte com os silêncios perceptíveis de modo natural, como um elemento fílmico diegético. Elza explica: “A organicidade é o essencial da nossa arte, de toda a reconstituição nossa. E a Direção de Arte está entendendo não só a questão da Cenografia, como a questão do Figurino e tudo que indica, ali, uma reconstituição histórica. Você usou a palavra que eu mais gosto. Uma palavra que eu uso, eu tendo usar, mas você usou antes de mim, e eu fico feliz que isso tenha acontecido: organicidade. A gente a buscou o tempo todo”.
Experiente cenógrafo e diretor de Arte, Moacyr Gramacho comprova isso. "Essa questão dos silêncios foi algo que a gente buscou muito na Direção de Arte. Um dos conceitos mais importantes que trabalhamos é que estamos falando de um país que ainda não era um país. Tivemos todo um trabalho de pesquisa muito mais em cima de fontes escritas, porque você tem pouca iconografia do século XVI”, pontua Moacyr.
“Um dos conceitos da Direção de Arte, por conta da ideia de direção de Elza, que é a de um filme um tanto atmosférico, foi a predominância de vazios sobre os cheios. Mas isso tem um sentido, também, histórico. Porque embora se fale muito que o Brasil nasce no Barroco, no Barroco é o contrário. É a predominância de cheios sobre vazios. Em um plano de filme Barroco, ou no plano de uma pintura Barroca, você não tem um cm² de nada sem uma firula, sem uma voluta. Mas a gente está falando do século XVI. É o século onde a Europa ainda vive o Renascimento. E você vê muito em detalhes. Por exemplo, aquela santa, que foi feita por Olga Gomes, ela é desenhada muito mais a partir de uma influência de Fra Angélico, de Leonardo Da Vinci, de Alberto Dürer, do que de Caravaggio, por exemplo”, esclarece Moacyr.
Para o espectador atento, é bem recompensador perceber a conjunção exata que o resultado dessa união de mentes traz. Em um filme cujo ritmo destoa tanto do acelerado cinema atual, de cortes rápidos e hermético, é ótimo adentrar em um trabalho que te convida a outro meio de reflexão e que prima por essa capacidade de te deslocar no tempo por duas horas.
As Órfãs da Rainha / Dir.: Elza Cataldo / Com Letícia Persiles, Rita Batata, Camila Botelho, César Ferrario, Alexandre Cioletti, Celso Frateschi. / Salas e horários: cinema.atarde.com.br
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