CULTURA
Um dos mais apreciados autores europeus, Paco Roca tem duas premiadas HQs lançadas no Brasil
Por Chico Castro Jr.
Assim como a literatura em prosa, a chamada arte sequencial (leia-se histórias em quadrinhos) pode se prestar a apresentar as mais variadas narrativas em qualquer gênero, dos super-heróis e infantis encontrados em qualquer banca de revistas às graphic novels mais sofisticadas e artisticamente pretensiosas. O espanhol Paco Roca, autor de Rugas e A Casa, lançadas juntas no Brasil pela Devir, se situa entre um extremo e outro.
Ambas as HQs, dirigidas ao público adulto, são muito superiores ao material comumente encontrado em bancas – mas também não são tão sofisticadas ao ponto de entediar ou alienar quem busca uma leitura mais leve.
Na verdade, se há algo que definitivamente caracteriza as HQs de Roca, esse algo é seu profundo humanismo, aliado a um evidente carinho pelos seus personagens.
Nascido em 1969 em Valencia, Francisco Martínez Roca tem seu trabalho mais conhecido justamente em Rugas (Arrugas, no original). A agridoce história de um senhorzinho com Alzheimer abandonado pelo filho em um abrigo para idosos vendeu, só na edição em língua espanhola (catalão e galego à parte) mais de 45 mil exemplares quando foi lançado, em 2008.
Em 2011 foi adaptado em um longa-metragem de animação homônimo, premiado com os Goya (o “Oscar” do cinema espanhol) de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme de Animação. A HQ em si, já publicada em várias línguas mundo afora, também faturou diversos prêmios, como o Prêmio Nacional de Cómic (que rendeu 20 mil € ao autor) e Melhor Narrativa Longa no tradicional Salão de Lucca, na Itália, entre outros.
As razões de tanto sucesso são fáceis de se entender ao se ler a obra. Roca aborda temas duríssimos (velhice, abandono, Alzheimer) com uma leveza, uma fluência e – sim, por que não? – um humor raros de se encontrar, mesmo em livros ou filmes. Junte-se a isso sua arte – cartunesca, mas não caricatural, detalhista, mas não excessiva, colorida em tons agradáveis, quase neutros – e está, com o perdão do chiste, desenhada a figura de um artista em pleno domínio de seu ofício de narrar histórias muito humanas e fáceis de se identificar de forma gráfica e sequencial: histórias em quadrinhos sim senhor, na sua forma mais madura, passível de ser apreciada por públicos de todas as idades e perfis.
Alzheimer com cuidado
Rugas começa justamente com a chegada de Emílio, o protagonista, ao abrigo onde seu filho Juan o deixa, pouco depois deste último receber do pai um prato de sopa no rosto – resultado da irritação de Juan com o estado cada vez mais aéreo do pobre Emílio.
A princípio, Emílio sequer sabe por que está ali, mas seus esquecimentos e ausências, quando simplesmente se vê em outro tempo e lugar, são cada vez mais frequentes.
Logo na chegada, ele fica amigo de Miguel, o velhinho mais malandro do abrigo. Meio gente-boa, meio sacana, Miguel pede dinheiro aos colegas mais idosos, dando desculpas de que é para cobrir despesas do abrigo.
É ele quem enturma Emílio no local, apresentando uma verdadeira fauna de personagens tristes e adoráveis ao recém-chegado (e aos leitores). E aí é a oportunidade de o autor mostrar sua sensibilidade e responsabilidade ao lidar com o tema do Alzheimer.
No posfácio, ele conta que, para realizar Rugas, visitou diversos abrigos de idosos, conversou com velhinhos, enfermeiros e médicos sobre a doença. Diversos personagens que estão na HQ saíram diretamente do que ele viu nestes abrigos.
Uma das histórias mais tocantes é a de uma senhora que sofre da doença e todos os dias recebe a visita do seu marido. Só que ela não o reconhece mais e acabou “adotando” um outro senhorzinho como novo namorado. “A velhice é uma piada de mau gosto”, diz Miguel. “O (senhor) que os observa é o marido da velha. Mas ela já não o reconhece. Nunca lhe dá um beijo, nem um gesto de carinho. Nada que deixe transparecer a recordação de uma vida inteira juntos. Para ela, seu marido é o outro idoso que conheceu no asilo. E às vezes tocam-se feito adolescentes enquanto o marido os observa, inconformado. É curioso, podemos perder a cabeça, mas não a vontade de sexo”, observa Miguel.
No asilo, o andar de cima é reservado para os doentes em estado avançado, que precisam de cuidados 24 horas por dia. Revoltado com sua doença, Emílio resolve disfarçar ao máximo seus sintomas para não ir parar ali, no que ganha a cumplicidade de Miguel.
Contar mais estraga a leitura, que voa rápida como os nossos anos de vida.
Desagregação familiar
Mais leve, A Casa é uma história igualmente familiar, na qual Roca meio que conta a história de sua própria família, a partir de um tema/gatilho clássico: a morte do pai.
Na verdade, é a história da desagregação de uma família após a partida do pai, que era quem mantinha os três irmãos protagonistas da HQ unidos. Pouco depois do enterro, os três (dois homens, uma mulher) vão chegando com suas próprias famílias à antiga casa de praia onde cresceram.
O mais velho quer vender a casa o quanto antes. O mais novo quer restaurá-la. A irmã do meio precisa do dinheiro, mas não tem certeza. Está posto o conflito familiar que permeia a HQ, mas não a ponto de dominá-la. Como em Rugas, o forte de Roca é traduzir estados emocionais sutis em pequenas sequências dramáticas em torno de diálogos naturalistas e a representação gráfica da passagem do tempo.
HQs de altíssimo nível e leitura adorável, Rugas e A Casa apresenta apenas uma parte da obra de Paco Roca. Que venham mais.
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