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Compradores de imóveis criticam imposto municipal: "Abuso"

Prefeitura atribui aos bens valores muito superiores àqueles desembolsados nas transações imobiliárias

Publicado quarta-feira, 20 de abril de 2022 às 00:00 h | Autor: Rodrigo Aguiar
ITIV é pago pelo comprador em toda transmissão de bens imóveis
ITIV é pago pelo comprador em toda transmissão de bens imóveis -

Além das recorrentes queixas relacionadas à cobrança do IPTU, contribuintes soteropolitanos acumulam mais protestos contra o Fisco municipal depois do susto levado quando compram algum imóvel, pela prática da prefeitura de arbitrar a base de cálculo do ITIV, atribuindo aos imóveis valores muito superiores àqueles desembolsados na transação imobiliária. O imposto é pago pelo comprador em toda transmissão de bens imóveis entre vivos, em uma taxa de 3%. 

Em fevereiro, ao julgar um recurso da prefeitura de São Paulo, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o tributo deve ser calculado com base no valor de mercado, ou seja, no que foi efetivamente pago no negócio. Não deve ser usado como referência o valor fixado pelos municípios para o cálculo do IPTU, o que vem sendo praticado em Salvador desde a reforma tributária de 2013.

O bancário Luciano Ataíde precisou tomar um empréstimo para pagar o ITIV cobrado pela prefeitura. Ele adquiriu um apartamento em Armação com o valor de contrato de R$ 550 mil, mas a administração municipal atribuiu ao imóvel o Valor Venal Atualizado de R$ 840,7 mil, quase 53% superior à transação. O tributo, que seria de R$ 16,5 mil, foi calculado em R$ 25.220. "É um abuso, uma injustiça tributária. Um burocrata define quanto vale o seu imóvel através de artifícios, ignorando a realidade", afirma Ataíde.

Quem também passou por essa situação foi Paulo Paiva, graduado em Direito, que, apesar de ter pago o ITIV cobrado, avalia entrar com uma ação judicial contra a prefeitura. "Havia certa urgência, então terminei pagando o imposto, mas tenho cinco anos para demandar a Fazenda", diz. O cartório não pode lavrar a escritura do imóvel com o novo dono sem o contribuinte apresentar o DAM (Documento da Arrecadação Municipal) do ITIV pago. Caso o cartório faça a escritura sem o ITIV quitado, pode ser cobrado pela gestão municipal.

Paiva conta que comprou o apartamento, localizado no Garcia, por R$ 490 mil, enquanto a prefeitura informou um valor venal de R$ 697 mil "O imóvel estava fechado há mais de oito anos, até com planta nascendo dentro", relata. O imposto cobrado foi de quase R$ 21 mil.

Tanto Ataíde quanto Paiva dizem que recorreram administrativamente na prefeitura, sem sucesso. "Fiz um requerimento para a prefeitura e foi prontamente negado. Pediram um prazo para responder de cinco dias, depois se manifestaram dizendo que o valor era aquele mesmo, e que não tinha como mexer", afirma Paiva. Ataíde chegou a anexar uma cópia da recente decisão do STJ, mas não teve resposta. 

Uma outra pessoa, que preferiu não se identificar, vendeu no ano passado um antigo apartamento na Barra, construído há mais de 40 anos, por R$ 525 mil. No entanto, o comprador precisou pagar só de ITIV R$ 26.695, equivalente a 3% do valor venal de R$ 889,8 mil.

Para Karla Borges, professora de Direito Tributário, a prefeitura precisa se adaptar à decisão do STJ. "Se o município não se adequa a essa tese, vai haver vários processos judiciais. Tem que obedecer à tese do recurso repetitivo. Todo processo relacionado a essa mesma matéria tem que ser interpretado dessa forma. Desde fevereiro eu venho alertando", diz.

O advogado Georges Humbert revela que obteve uma vitória judicial recente, em decisão da 1ª Vara da Fazenda Pública, na qual foi citada, além do Código Tributário, a determinação do STJ. O caso tratava-se da venda de uma cota de 25% de um imóvel em Brotas, avaliada em R$ 1 milhão pelas partes. "O município quis aplicar para dizer quanto seria. O juiz da causa considerou que é ilícito o município considerar o valor venal, e não o valor pago efetivamente. Atendeu a todos os nossos pedidos, determinando que o município emitisse inclusive uma nova guia", afirma o defensor.

Sobre a metodologia usada pela prefeitura para calcular o ITIV, Karla critica: "A secretaria disse que tornaria públicos os valores venais atualizados, mas isso é uma disposição vaga. O município, sem lei, instrução, portaria, criou um sistema de recolhimento do ITIV, ignorando o valor da transação. Os valores venais não estão em nenhuma portaria, instrução normativa, nada.

"A manutenção desta conduta ilegal pela prefeitura é repreensível, pois desautoriza o STJ, pode atolar o Poder Judiciário com ações cuja solução já foi dada, e ainda prejudicar o cidadão menos favorecido ou desinformado, que pode ser ou ter sido lesado por conduta manifestamente ilegal do Município de Salvador, além de violadora do princípio da moralidade da administração pública”, completa Humbert.

Sefaz

A Secretaria da Fazenda de Salvador informou que, a despeito de recente decisão do STJ, cumpre a legislação municipal para fixar a base de cálculo do Imposto sobre Transmissão Inter Vivos (ITIV). A pasta disse ainda manter "contato permanente" com grupos empresariais e imobiliários para evitar disputas judiciais. 

"Apesar da decisão proferida pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça não vincular a administração pública, o objetivo da administração local é evitar a judicialização e prejuízos ao contribuinte. Assim, a pasta ressalta que já vem mantendo contato permanente com associações empresariais e imobiliárias que atuam na cidade, como Ademi e Forum Empresarial, para adequar procedimentos, simplificar a interação com o cidadão soteropolitano", informou a Sefaz, por meio de nota.

A partir dos diálogos nos últimos meses, acrescentou a secretaria, foram promovidas atualizações e modernizações de sistemas e metodologias para tornar "mais transparente e fácil" a vida do contribuinte.

A pasta destacou que quem não concordar com a base de cálculo do ITIV pode solicitar avaliação especial do imóvel, com apresentação dos dados da transação e fundamentos do pedido. "A Sefaz reforça que a guia de pagamento do ITIV já é emitida automaticamente quando o valor declarado pelo contribuinte está compatível com o valor de mercado", completou a secretaria.

Mercado imobiliário

Integrantes do mercado imobiliário demonstram otimismo com a possibilidade de mudança no cálculo do Imposto de Transmissão Inter Vivos (ITIV) em Salvador e outros municípios, medida que, segundo eles, seria benéfica para o segmento.

Conforme o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o imposto deve ser calculado com base no valor de transação do imóvel, e não no valor venal determinado pelas prefeituras. 

"É um direito legítimo. Se estou vendendo por R$ 500 mil, é justo que se pague o imposto sobre R$ 500 mil. Se isso acontecer, o impacto para o mercado imobiliário vai ser muito bom", aponta Noel Silva, diretor do Conselho Regional de Corretores de Imóveis da Bahia (Creci-BA). 

O corretor relata a desistência de clientes na aquisição de imóveis por causa do ITIV cobrado. Ao exemplificar, destaca que um imóvel antigo na Graça seria vendido por R$ 300 mil, mas os compradores recuaram, segundo ele, devido ao valor venal de R$ 680 mil. "A pessoa disse: 'não tenho esse dinheiro a mais'. Seriam R$ 20 mil [de imposto]", lembra. 

Noel comemora ainda o fato de que muitos contribuintes poderão acionar a Justiça mesmo após efetivado o pagamento do tributo. "Enquanto não se paga o imposto, a gente não pode celebrar escritura ou contrato de financiamento. Uma discussão dessa no Judiciário pode demorar meses. A gente vai esperar? O negócio vai se esvaziar. Mas, se a pessoa quiser pagar e entrar depois para pedir o ressarcimento, é ótimo. Provavelmente é isso que vai acontecer", diz.

Segundo o diretor do Creci, o ideal é que o entendimento firmado pelo STJ se torne uma súmula, com a capacidade de vincular qualquer decisão relacionada. "Enquanto isso não acontece, creio que os municípios vão continuar cobrando sobre o valor venal, o que é lamentável para a gente. Com a súmula, a prefeitura vai pensar duas vezes antes de recorrer. Porque, perdendo, além de devolver, vai precisar pagar os custos dos processos", opina.

O presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (Ademi-BA), Cláudio Cunha, ressalta que a mudança no cálculo do ITIV é uma reivindicação da entidade desde a gestão de ACM Neto. "Até o presente momento, a prefeitura determina um valor e não adota, como deveria ser e como diz a decisão do STJ, o valor da negociação imobiliária decretada pelo comprador e vendedor", afirma. "Essa decisão vem normatizar e regularizar essa situação, trazendo mais segurança jurídica", acrescenta. 

O atual cálculo traz algumas inconsistências, de acordo com Cunha. "Os cartórios são obrigados a informar à Receita o valor da transação. O que acontece é que hoje você tem o valor do negócio diferente de um valor de avaliação. Você vende um imóvel por R$ 1 milhão, por exemplo, e a prefeitura determina R$ 1,1 milhão [como valor venal]. E o cartório informa R$ 1,1 milhão", diz.

Conforme o presidente da Ademi, a associação tem dialogado com a prefeitura para que a nova metodologia seja adotada "o mais rápido possível".

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