EDUCAÇÃO
Ocupação da Ufba em ato por cotas completa 20 anos
Implementação do sistema na Universidade foi marcada por episódios de luta e resistência
Uma das pioneiras na aplicação de cotas no ingresso ao ensino superior, há 18 anos as cotas raciais são uma realidade na Universidade Federal da Bahia (UFBA) - a Lei de Cotas Federal (12.711/2012) existe há 13 anos. Repleta de debates, passeatas e atos, a entrada das cotas na UFBA foi intensa, com episódios, inclusive, de ocupações como a que aconteceu há 20 anos na reitoria da universidade e que estampou a capa de A TARDE em 13 de agosto de 2003. “O nosso ato marcou a história da UFBA, pois aquela intervenção foi um passo importante para a implementação das cotas na instituição”, lembra um dos participantes do ato, Nemias Pereira de Souza.
Nascido em Paulo Afonso e evangélico batista, Nemias cursava línguas estrangeiras (Letras) na época e fazia parte do Coletivo de Estudantes Negros Universitários da Bahia (Cenumba), parte do Comitê Pró-Cotas da UFBA. Hoje, licenciado em letras e bacharel em direito, Nemias é professor de inglês da rede estadual de ensino e acredita que, apesar dos avanços do sistema de cotas, ele ainda não está como deve ser. “O povo negro é 80% da população de Salvador e isso deve refletir na universidade por uma questão de equidade e justiça”, afirma.
Depois da publicação da foto na capa do jornal, salienta Kleber Rosa, que na época estava se graduando como cientista social e era coordenador do Cenunba, o movimento cresceu. “E Isso foi importantíssimo, pois outros estudantes, funcionários da universidade e até o sindicato dos professores se juntaram à nossa luta”, lembra Kleber que hoje é professor, investigador da Polícia Civil, ativista do movimento negro e, ano passado, foi candidato a governador da Bahia.
Kleber Rosa conta que, quando o grupo entrou na reitoria, “éramos 11 estudantes ousados e com todo o nosso protagonismo juvenil”. O reitor na época, Naomar Almeida, tentou os expulsar, dizendo que não eram bem vindos, mas eles permaneceram lá por três dias. “Fomos nós que iniciamos esse debate mais popular sobre cotas. Apesar de não sermos a primeira universidade a adotar as cotas, as que conseguiram essa vitória antes de nós foram um reflexo do que estávamos fazendo. Hoje me sinto muito honrado de ter participado de algo tão fantástico e fundamental. A minha luta como ativista continua, mas também sinto que cumpri meu papel histórico com essa conquista”, afirma.
Já formada em ciências sociais e fazendo mestrado (que acabou não concluindo) na época do ato, Dorismar Andrade do Espírito Santo também era coordenadora do Cenunba e recorda que a discussão em torno da implantação de cotas na UFBA já vinha acontecendo a um bom tempo dentro do núcleo. “Fomos nos inserindo no DCE e com isso criamos uma espécie de onda entre os estudantes. Em 2003 estávamos realizando vários debates, caminhadas, protestos e negociações com a UFBA, mas foi só depois dessa ocupação que o reitor sentou com a gente, formou um grupo para pensar o projeto de cotas e ele foi criado”.
Cientista social e política, com especialização em ciências sociais, história social e cultura afro-brasileira, Dorismar é professora da rede estadual de ensino e acredita que a instalação do sistema de cotas em todas as universidades públicas só fez enriquecer o processo de conhecimento. “O conhecimento é algo que tem que ser universal, né? Após dez anos da Lei de Cotas foi feito um levantamento mostrando que os estudantes cotistas tinham um desempenho melhor que os não cotistas. Então, 20 anos depois desse ato na reitoria, o que tenho a dizer é: a gente não chegou ao ideal que a gente queria, mas a democratização melhorou demais”, afirma.
‘Revolução indígena’
Desde a adoção das cotas, em 2003, aconteceram mudanças significativas no ingresso de estudantes do sistema público na UFBA, afirma o professor titular de antropologia da UFBA, Jocélio Teles dos Santos, que entre as temáticas que pesquisa, estão as ações afirmativas no ensino superior. “Houve uma revolução com relação aos indígenas, até então ausentes nos cursos de graduação e pós-graduação. E um crescimento muito significativo de estudantes negros (auto declarados pretos e pardos) em cursos considerados de prestígio. Ocorreu uma quebra das desigualdades nas instituições do ensino superior, numa sociedade que continua profundamente desigual em termos sociais e raciais”, explica.
Desde a implantação das cotas a universidade está mais diversa e plural, com representantes de camadas étnicas e sociais que historicamente estiveram fora ou em proporção diminuta no ensino superior, afirma a presidente da Comissão Permanente de Heteroidentificação Complementar à Autodeclaração de pessoas negras para os processos seletivos na UFBA (CPHA/UFBA), Juliana Marta Oliveira. “E essa diversidade só enriquece nossa comunidade, multiplicam e ampliam os valores, as perspectivas e a missão da universidade”, pontua.
A implementação efetiva do sistema de cotas na UFBA aconteceu em 2005, e além da reserva de 50% das vagas para pessoas negras no vestibular, instituiu as vagas supranumerárias (vagas extras) para indígenas e quilombolas. “Hoje as vagas supranumerárias são em cinco modalidades, e incluem as pessoas trans (transgêneros, travestis e transexuais), imigrantes, refugiados e servidores técnicos administrativos. E as reservas de vagas foram ampliadas para o acesso à pós-graduação desde o ano de 2017”, explica a presidente da CPHA.
Atualmente em seu sexto semestre do curso de medicina, a estudante cotista Lindinês de Jesus Souza está por trás da denúncia de fraude das cotas na UFBA em 2019 e conta que, por conta da dinâmica acadêmica, sua atuação dentro do movimento pró-cotas se tornou limitada, mas ela continua tocando no assunto sempre que possível. “É importante sempre tentar lembrar as pessoas que não há como falar de desigualdade no Brasil sem contemplar a questão racial, inclusive nos espaços acadêmicos. Todos os recortes são atravessados por essa questão. Além disso, o que fiz em 2019 não fiz sozinha, houveram muitas outras mãos e vozes, assim como essa ocupação há 20 anos atrás. É importante reconhecer essas lutas e a coletividade delas”.
E valorizar estas lutas reforça a importância do acesso à universidade para os grupos desfavorecidos, salienta a também aluna cotista de medicina na UFBA, Mariralcia dos Santos e Santos, que está no quinto semestre. “O acesso à educação é o principal meio de mudança de paradigmas sociais. O que também mina o racismo, a violência e toda a formação social que agrava ainda mais a vulnerabilidade dos grupos que constituem a base da sociedade”, afirma.
Marco
A criação e implantação do sistema de cotas foi um marco na história da educação superior no Brasil - de acordo com um levantamento do portal Quero Bolsa junto ao IBGE, entre 2010 e 2019 o número de pessoas negras no ensino superior cresceu 400% no país. Revisado e aprimorado com o passar dos anos, um dos avanços importantes do sistema de cotas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) nos últimos anos foi a criação de uma banca de heteroidentificação - comissão que faz uma análise das características fenotípicas do candidato autodeclarado preto ou pardo - depois de inúmeras denúncias de fraude no sistema.
A maior missão da reserva de vagas (cotas) é a pauta afirmativa, educativa e do acolhimento, afirma a presidente da Comissão Permanente de Heteroidentificação Complementar à Autodeclaração de pessoas negras para os processos seletivos na UFBA (CPHA/UFBA), Juliana Marta Oliveira. “A discussão sobre cotas colocou a sociedade brasileira para discutir raça, assim como mostrou a essa mesma sociedade como o racismo impediu que pessoas negras, só por serem negras, não ‘podiam’ acessar certos espaços, incluindo a universidade”, explica.
No procedimentos de heteroidentificação, explica a presidente da CPHA, há uma sala de acolhimento que funciona como um dispositivo de formação para os candidatos, onde se fala sobre o processo de formação da sociedade brasileira, a escravização dos povos africanos, e da requisição dos movimentos sociais negros e estudantis pela implementação das reservas de vagas. “O processo de matrícula dos candidatos cotistas tem que ser um momento de acolhimento, para mostrar a eles, candidatos pretos e pardos, que a universidade também é um espaço deles, que a sua chegada é muito bem-vinda, e que só tornará esse espaço múltiplo, diverso e forte”, afirma Juliana Marta.
Vídeos
Dorismar e Nemias também conversaram em vídeo com A TARDE sobre o assunto. Confira:
Serviços
Conheça a história das cotas no ensino superior
Livro: Cotas nas Universidades: Análises dos processos de decisão
Jocélio Teles dos Santos (Org.)
Livro: O impacto das cotas nas universidades brasileiras (2004-2012)
Jocélio Teles dos Santos (Org.)
A versão em PDF dos dois livros está disponível de forma gratuita no site www.redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br
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