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Pessoas com deficiência lutam por oportunidades de trabalho

Retorno ao mercado é prejudicado por aumento de demissões de PCDs por causa da pandemia

Publicado quarta-feira, 23 de março de 2022 às 06:00 h | Autor: Bianca Carneiro
Pessoas com deficiência lutam para ter seus direitos e espaços respeitados nas empresas
Pessoas com deficiência lutam para ter seus direitos e espaços respeitados nas empresas -

A pandemia atingiu em cheio o mercado formal de empregos. Em meio à parcela de trabalhadores em busca de uma oportunidade, estão as pessoas com deficiência (PcDs), que também lutam para ter seus direitos e espaços respeitados nas empresas.

Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) apontam que cerca de 25 mil pessoas com deficiência e reabilitadas perderam o emprego formal no Brasil, no primeiro trimestre de 2021. As demissões coincidem com o fim da validade da Lei 14.020, de julho de 2020, que não permitia a demissão de pessoas com deficiência sem justa causa até 31 de dezembro de 2020, devido ao estado de calamidade pública provocado pelo coronavírus.

Somente na Bahia, em 2021, foram registradas 1.071 rescisões de pessoas com deficiência. Isso porque, de março de 2020 a dezembro de 2021, houve o desligamento de 5.155 pessoas com deficiência dos postos de trabalho, sendo que 2.904 ocorreram sem justa causa, por iniciativa do empregado. O levantamento é do Ministério do Trabalho e Previdência, enviado ao Portal A TARDE.

Para a tradutora, intérprete e coach para Linguagem Brasileiras de Sinais (Libras) e negócios, Eurides Nascimento, a dificuldade das pessoas com deficiência permanecerem nos empregos vai muito além dos fatores econômicos responsáveis pelo aumento do desemprego em geral. Um dos principais pontos, segundo ela, é o aumento do uso das tecnologias que, muitas vezes, não são acessíveis ou democratizadas para o uso da PcD, criando o chamado ‘apartheid digital’. 

“Muitas PcDs ficaram aquém da inserção no mercado de trabalho por causa desse apartheid digital e do avanço tecnológico. Além disso, algumas pessoas com deficiências específicas foram impedidas de transitar na pandemia porque tinham uma possibilidade muito forte de ter sintomas agravados. Essa alta de demissões representa um declínio de conquistas”, pontua.

Professora bilíngue na área de acessibilidade, Eurides também atua como consultora em empresas, com foco na inserção e permanência da pessoa com deficiência nestas instituições. Um dos beneficiados pelo trabalho foi Elinilson Soares, 40, que é da área das artes, mas também atua como professor de Libras, consultor linguístico e auxiliar administrativo. Ele conta que, apesar de não ter sido demitido no período mais crítico da pandemia, precisou buscar um complemento na renda após ter o horário reduzido. Foi quando começou a trabalhar em lives musicais e artísticas como consultor linguístico, além de dar palestras sobre sua vivência enquanto surdo e artista.

“Eu percebo que hoje é um momento de muito desafio. As pessoas com deficiência encontraram muitas barreiras durante esse período que vivemos na luta contra a covid-19. Muitas empresas demitiram em massa, e algumas também faliram. Hoje, eu tenho tentado me fortalecer no trabalho, seja no administrativo ou nos estudos das artes, mas isso não é um processo fácil, é bem complicado. Tenho lutado muito e, se eu pudesse resumir o momento que estou vivendo com uma palavra, seria ‘desafio’," diz ele.

Elinilson Soares precisou completar renda na pandemia
Elinilson Soares precisou completar renda na pandemia |  Foto: Divulgação
  

Em recuperação

Com a retomada progressiva do mercado, impulsionada pelo avanço da vacinação e redução das medidas de distanciamento social, a expectativa é que os postos de trabalho cresçam. Em Salvador, por exemplo, o Serviço Municipal de Intermediação de Mão de Obra (Simm) ofertou 1.008 vagas de emprego para pessoas com deficiência no ano passado, segundo balanço enviado ao Portal A TARDE. O mês com o maior número foi setembro, com 317, enquanto abril registrou o menor, com apenas nove. A procura por uma oportunidade foi grande: ao todo, o órgão realizou 1.408 encaminhamentos de PCDs para entrevista. 

O soteropolitano Jailton Ribeiro, 40, foi um dos que conseguiram uma posição por meio do Simm. Ele, que possui deficiência física, já estava desempregado há cinco anos. “Vinha fazendo muitos processos seletivos, sem conseguir. Vi a vaga na internet em outubro, fiz a entrevista e deu certo. Hoje, trabalho como empacotador em supermercado”, conta ele.

No entanto, não basta apenas criar novas vagas no mercado. Também é preciso melhorá-lo para as pessoas com deficiência, combatendo o capacitismo e fazendo valer a inclusão. É o que pensa o administrador, professor de espanhol e palestrante Jaime Córdova. Chileno naturalizado brasileiro, ele é também diretor do Instituto Inserir, entidade sem fins lucrativos que atua na defesa dos direitos e presta assistência integral às pessoas com deficiência de qualquer natureza. A instituição foi fundada após o nascimento de seu filho Nicholas, de 11 anos, que tem Síndrome de Down.

“A falta de uma mudança cultural para com as PcDs, baixos salários e a falta de políticas públicas e privadas são os maiores problemas. As empresas deveriam criar suas próprias políticas para incentivar as PcDs para inseri-las no mercado de trabalho’, diz ele. O Instituto Inserir, através de seu núcleo de empregabilidade, além de capacitar e treinar PcD para inseri-los no mercado de trabalho, também incentiva o empreendedorismo, como começar um negócio, como ser MEI, educação financeira, entre outros. São opções que ajudam a desenvolver e ter seu próprio negócio, muitas vezes sem sair de casa”, explica.

Para a tradutora Eurides, o primeiro passo é as empresas entenderem que só têm a ganhar com a diversidade. A partir daí, é preciso deixar os processos seletivos mais acessíveis, respeitando a necessidade linguística de cada deficiência. “Já presenciei PcDs que não conseguiram concluir todo o processo de seleção por não decodificar esse código tecnológico. Um dos problemas é esta questão, que vai desde o processo de divulgação da vaga: se eu for divulgar para uma pessoa cega, muitas vezes o card não dá essa visibilidade. Se for pra pessoa surda, muitos deles não conhecem a língua portuguesa, então essa divulgação poderia vir em língua de sinais, assim como todo o processo”, diz ela.

Consultora Eurides Nascimento chama a atenção para a exclusão das PcDs no mercado por conta do ‘apartheid digital’
Consultora Eurides Nascimento chama a atenção para a exclusão das PcDs no mercado por conta do ‘apartheid digital’ |  Foto: Divulgação
 

A dificuldade de comunicação no trabalho também é apontada como um grande problema por Elinilson, especialmente no período da pandemia. “O uso da máscara dificultou ainda mais para as pessoas surdas que fazem a leitura labial. E essa dificuldade perpassou por outros espaços também, na empresa, em espaços de saúde, em lojas. Eu mesmo fui demitido recentemente e enfrentei muitas barreiras. Por conta dessa falta de comunicação, muitos ouvintes ou pessoas que não têm deficiência, acabam compactuando com o capacitismo, achando que a pessoa surda não tem competências e habilidades. E isso acontece muito em Salvador. Muitos surdos, por exemplo, fazem faculdade em várias áreas de conhecimento, mas não são contratados em cargos equivalentes à sua formação, ou nunca conseguem atuar no mercado de trabalho”, relata ele.

“Precisamos tornar mais acessíveis os espaços de trabalho, contratando intérpretes, confiando funções de liderança também para pessoas surdas, no intento de que alguns preconceitos sejam dissipados, com isso, eu garanto que as pessoas surdas se sentirão mais incentivadas e produzirão ainda mais”, continua.

O advogado Bruno do Amor Divino dos Santos, militante na seara trabalhista e civil, explica que o capacitismo, preconceito que tem como base a “capacidade” de outros seres humanos, é passível de repreensão e punição, desde que haja denúncia.

“É o pensamento preconceituoso de que a pessoa com deficiência é inferior àquela que não possui deficiência, passando o primeiro a ser tratado de forma jocosa como anormal, incapaz, isso em comparação àquele considerado “perfeito”. Travestem-se de brincadeira jargões pejorativos ao profissional que incide em ato considerado prejudicial à empresa, como por exemplo o profissional que faz algo errado em sua função e é apontado por ter “dado mancada”. Tal conduta impõe ao profissional que, por exemplo, possui deficiência motora nos pés ou pernas, condição de inferioridade”, afirma ele.

Orienta-se ao profissional que foi ou é vítima do capacitismo que busque seus superiores ou até mesmo o setor pessoal da empresa ou órgão público a fim de denunciar o ocorrido. Bruno Santos, Advogado
  

Direitos

É fundamental que as pessoas com deficiência conheçam seus direitos trabalhistas. Bruno lembra que, por lei, é garantido ao trabalhador com deficiência o mesmo conjunto de normas aplicadas aos trabalhadores de modo geral, como: direito à remuneração, jornada salubre, proteção contra riscos e acidentes, intervalos intrajornada, descanso semanal remunerado, férias, recolhimentos fundiários e previdenciários, bonificações e percepção de horas extras, entre outras.

A Justiça também assegura o cumprimento das contratações de pessoas com deficiência, através das cotas. “A empresa com 100 ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência”, explica o advogado. 

No entanto, os números de contratações mostram que as cotas nem sempre são cumpridas à risca. Já antes da pandemia, em 2019, o percentual de PcDs com emprego formal na Bahia correspondia a apenas 50,87% do total de pessoas que deveriam ter sido contempladas pela lei, conforme informações do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

Em meio a preocupações com cotas, de acordo com Eurides e Jaime, atualmente falta ao mercado de trabalho reconhecer as PcDs em suas competências e singularidades, evitando direcioná-las a apenas um cargo ou posição específica. A consultora diz que as empresas devem contratar para além do mero cumprimento da lei e incentivar o desenvolvimento dos colaboradores.

“As instituições têm receio de contratar esse grupo. A depender da deficiência, acreditam que dá trabalho manter. Se for um surdo, tem que ter intérprete; cego, precisa de adaptação. Só que esse direito da PcD a ter adaptação, caminho tátil e informações na sua língua, deveria ser algo comum e o institucional deveria se preparar para, quando tivesse a PcD, ela ser introduzida de uma forma naturalizada. Mas é o inverso: primeiro insere e depois vê o que vai fazer, então tem esse receio, a questão do custo, que acreditam ser alto. Mas perde-se muito porque ter uma PcD no espaço desperta nos próprios colaboradores a ideia do pertencimento, e se isso for realmente bem trabalhado, o sujeito se sente valorizado quando colocado na sua área de atuação e reverbera na boa lucratividade para a empresa”, defende Eurides.

“Em primeiro lugar, as empresas deveriam mudar a postura, realizar cursos, palestras e workshop para, assim, poder desmistificar as deficiências. Um ponto importante que as empresas deveriam focar é: realizar cursos de capacitação nas instituições para todos os colaboradores, com o intuito de saber lidar com PcDs para evitar situações desagradáveis que afetam o emocional de uma PcD, como já ocorreu de segurança tirar pai com o filho com deficiência do banheiro num shopping, não respeitar a prioridade da fila por achar que não tem deficiência, fatos comuns com autistas. Ainda há muito por fazer e percorrer, mas acreditamos que a pandemia também trouxe mais empatia para que todos possamos viver num mundo mais justo. Afinal, que 'careta' seria o mundo se fôssemos todos iguais”, finaliza Jaime.

Segundo Bruno, trabalhadores com algum tipo de deficiência que forem vítimas de capacitismo ou tiverem algum direito desrespeitado devem procurar a direção da empresa ou órgão público a fim de denunciar.

“Neste sentido, orienta-se ao profissional que foi ou é vítima do capacitismo que busque seus superiores ou até mesmo o setor pessoal da empresa ou órgão público, a fim de denunciar o ocorrido. Caso estes não tomem as medidas cabíveis, o profissional pode ainda buscar o Ministério Público do Trabalho ou as Delegacias do Trabalho, a fim de promover a denúncia da empresa e, se preferir, pode ser acompanhada por advogado de confiança ou até mesmo pela Defensoria Pública”, orienta.

Chileno naturalizado brasileiro, Jaime Córdova, criou instituto  após o nascimento de seu filho, que tem Síndrome de Down
Chileno naturalizado brasileiro, Jaime Córdova, criou instituto após o nascimento de seu filho, que tem Síndrome de Down |  Foto: Divulgação

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