OLIMPÍADA
Famílias japonesas se adaptam à vida em Salvador sem perder as origens
Por Bianca Carneiro
Conexão Bahia-Japão | Série 2/4
Geograficamente, Salvador e Japão não são nada próximos no mapa. Em linha reta (rota aérea), a capital baiana e o país oriental são separados por 17.411 km. A distância, porém, não impediu que japoneses se apaixonassem por Salvador, tampouco que soteropolitanos sentissem o mesmo pela cultura nipônica. Mais de 110 anos após a imigração japonesa alcançar a terra brasilis oficialmente em 1908, e a poucos dias da Olimpíadas de Tóquio, a conexão entre esses dois lugares tão diferentes continua mais forte do que nunca, para ambos os povos.
O japonês Kyuji Shimizu chegou de navio ao Brasil em 1960. Aqui, ele e a família receberam um incentivo do governo para trabalhar na agricultura, se instalando na cidade de Mata de São João, no Núcleo Colonial JK, um dos redutos de famílias japonesas no estado. Porém, algum tempo depois, ele e os três filhos decidiram se mudar e iniciar um negócio de comida oriental para atender a demanda de japoneses que vinham trabalhar na região das indústrias e polo petroquímico. Assim nasceu o restaurante Sukyiaki, em 1975, o primeiro restaurante japonês de Salvador e um dos pioneiros na Bahia.
“Meu avô sentia muita falta de algo que pudessem comer mais fácil porque o tempero da comida baiana é bem mais pesado, diferente do que os japoneses estavam acostumados”, conta o advogado Marcos Tsuneo Shimizu, neto de Kyuji Shimizu e um dos atuais gestores do estabelecimento.
O que começou com o objetivo de atender aos gostos dos conterrâneos continuou fazendo sucesso na terra do dendê. Para Marcos, o Sukyiaki ajudou o soteropolitano a tomar gosto pela comida japonesa. “Hoje é meio que uma febre, todo mundo gosta, o povo procura bastante”, diz.
Vivendo em uma terra onde as culturas de diversos povos se misturam, a família Shimizu vai além da culinária para não perder de vista as origens. “A gente busca assistir canais japoneses, dentro de casa meus pais conversam muito na língua e tentamos participar de atividades ligadas às associações voltadas à comunidade japonesa. A gente também sempre recebe muitos japoneses aqui no restaurante e, por conta disso, conseguimos manter um pouco da tradição e da cultura”, explica Marcos.
Entre as associações voltadas a apoiar a comunidade nikkei (imigrantes japoneses e sua descendência) de Salvador e divulgar a cultura japonesa citadas pelo advogado, está a Associação Cultural Nippo-Brasileira de Salvador (Anisa), presidida atualmente pela sansei Lika Kawano. Ela, que nasceu no Brasil e veio de uma comunidade japonesa em Londrina, no Paraná, mora em Salvador há 14 anos.
O interesse pela capital baiana surgiu de forma despretensiosa, após um passeio. “Uma prima me convidou há uns anos para vir conhecer Salvador e acabei me encantando pela cidade. Meu marido faz acupuntura e nós achamos que seria bacana começar a trabalhar aqui”, lembra.
De Londrina para Salvador, uma das principais diferenças observadas por Lika foi a quantidade de descendentes japoneses, bem menor na capital baiana. A partir daí, ela, que sempre trabalhou com cultura, decidiu se juntar à Anisa em 2007. De lá para cá, a gestora atuou na organização de diversos eventos importantes, como o Festival Bon Odori de Cultura Japonesa e o Centenário da Imigração Brasileira. Há quatro anos, ela assumiu a presidência da entidade.
De avós japoneses e pais nascidos no Brasil assim como ela, Lika diz que decidiu ser presidente da Anisa para tentar fazer algo pela comunidade japonesa no país. No entanto, seu orgulho e respeito pelas raízes japonesas estão aliados ao amor que a sansei sente pela Bahia.
“Nós aqui da minha família somos brasileiros, mas a gente carrega muito a filosofia e os valores japoneses deixados pelos nossos ancestrais. Então isso vai passar com certeza de pai pra filho e filho pra neto. Já está no nosso sangue. A Bahia é um estado maravilhoso, me adaptei muito bem. O povo baiano, nordestino, é muito acolhedor e receptivo”, conta ela.
O amor por Salvador e pelo Japão também é algo compartilhado por Marcos, que fala ainda sobre as vantagens de estar conectado a duas culturas tão distintas. “Eu sou soteropolitano e apaixonado pela minha cidade. Passei um tempo em outro lugar, mas quis retornar pra cá. O povo daqui é diferente, alegre, feliz, mesmo com todas as dificuldades. É bom ser descendente de japoneses porque a gente tem a oportunidade de absorver as coisas boas de duas culturas totalmente diferentes”, pontua.
“Ser nipo-brasileiro é carregar nossos traços e ter uma gratidão grande aos nossos antepassados porque, se não fosse por eles, pelo esforço, dedicação, resiliência, a gente não estaria aqui. Acho que é também praticar os valores e a filosofia e tentar preservar essa cultura. Não deixar morrer e colocar em prática”, finaliza Lika.
Poesia japonesa made in Bahia
Do lado de cá, a Bahia também possui histórias de famílias que, mesmo sem qualquer ligação genética com o Japão, estabeleceram um vínculo afetivo junto ao país. Uma delas é a do jornalista Fernando Tolentino, filho do já falecido escritor e poeta baiano Oldegar Vieira, um dos responsáveis por introduzir o haicai, poema curto de origem japonesa, no Brasil.
Nascido em 1915 em Salvador, Oldegar era filho de um comerciante e uma dona de casa. Ele morou toda a infância e adolescência na Rua do Tingui, ao lado do Fórum Ruy Barbosa e, segundo Fernando, começou a escrever os primeiros haicais na época em que estudava Direito na UFBA e atuava como professor de Português no Colégio Estadual da Bahia (Central).
Após a graduação em Direito, Oldegar se mudou para o Rio de Janeiro, onde se tornou professor do Senai e teve intensa vida cultural. “Foi nesta época que publicou Folhas de Chá, o primeiro livro editado no Brasil exclusivamente com haicais”, explica Fernando. Conforme o prefácio do livro do escritor baiano, os haicais “são como a palheta que tange as cordas das almas”.
Marcadas pela sutileza e reflexividade, as poesias de Oldegar ganharam as páginas de diversas publicações, entre elas o Jornal A TARDE. A paixão pelo haicai trouxe reconhecimento: o baiano foi condecorado no Japão com a insígnia de Comendador da Ordem do Tesouro Sagrado com Laço pelo então Imperador Akihito. “Ele ocasionalmente usava a medalha em solenidades da Academia de Letras da Bahia, da qual era membro”, diz Fernando.
De acordo com Fernando, o interesse pelo haicai acabou 'contaminando' toda a família. Jane Ribeiro, uma das irmãs caçulas de Oldegar, publicou 'Instantes', um livro inteiro com poesias do gênero. “Os netos baianos organizaram um torneio de haicais em recente evento familiar. Embora a poesia não seja o meu gênero dominante, também tenho alguma produção e, entre os poemas, alguns haicais ocasionais”, conta Fernando.
Essa relação estreita com o país oriental, que começou na juventude e trouxe a condecoração, o acompanhou por toda a vida: em seus últimos anos, ele presidiu a Associação Cultural Brasil-Japão na Bahia. Para a família, junto com o incentivo ao desenvolvimento intelectual e a aproximação com a cultura nipônica, um outro grande legado de Oldegar é a solidariedade, manifestada em diversos episódios da sua trajetória.
“Considero que o maior legado de meu pai foi o envolvimento com as dificuldades dos outros. A sensibilidade com isso e o comprometimento com a solução desses problemas”, revela Fernando. O jornalista planeja publicar uma obra poética produzida pelo pai em seus últimos cinco anos de vida.
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