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Comidas para alimentar as almas

Publicado quinta-feira, 30 de outubro de 2014 às 13:18 h | Autor: Vilson Caetano | Antropólogo | [email protected]
Vilson Caetano
Vilson Caetano -

Desde a antiguidade, a humanidade tem dispensado tratamento especial aos seus entes queridos, lhes oferecendo festivais regados de comida e bebida.

Alguns autores chegam a afirmar que os antepassados foram os primeiros seres com os quais os grupos humanos foram obrigados a estabelecer relações de troca, pois destas dependiam a permanência e continuidade de suas civilizações na terra.

No Egito Antigo, por exemplo, a comida e a bebida depositadas nos túmulos dos Faraós, bem como a representação da preparação de alimentos como pães, bolachas, bolos, cervejas e vinhos, garantiam a imortalidade, depois de feito o ritual de abertura da boca do Faraó após o seu corpo ter sido preparado.

Visões de mundo

A relação entre comida e antepassados é algo que se repete em várias culturas. Nos dias atuais, ela persiste originada das visões de mundo das várias culturas que nos formaram. Assim, por onde quer que haja comida para os mortos, lá estão os vivos se regalando destas.

A cozinha pós-morte de origem portuguesa se mostrava bastante flexível. Ela não elencava os alimentos que poderiam ser preparados, restringia-se apenas a dizer: "Em casa que se tem defunto fresco não se come carne fresca".

Desta maneira, salvo a carne, que no período colonial era algo escasso em algumas regiões do país, sendo um dos gêneros alimentícios mais caros e dispendiosos - sobretudo em ocasiões onde acorria-se muita gente como os velórios - os vivos podiam contar com um cardápio que variava de acordo com o poder aquisitivo da família do morto.

Grupos indígenas ainda hoje mantêm rituais específicos, alguns já descritos por estudiosos, chamados de "refeição das almas", quando são preparadas comidas que servem para alimentar o espírito dos antepassados e a comunidade.

O mesmo vale para as culturas tradicionais africanas onde os antepassados comem e bebem durante dias com a comunidade, fazendo valer a expressão: "A morte é uma festa."

Velórios

Há tempos tive contato com o curioso livro de Déa Rodrigues da Cunha Rocha, Os Comes e Bebes nos Velórios das Gerais e Outras Histórias.

Trata de receitas de comidas e bebidas que circulavam em alguns velórios em Minas Gerais, certamente antes de serem substituídos pelos kits lanches velórios oferecidos por uma empresa especializada em Belo Horizonte, composto por suco, café, leite, bolo e pão de queijo.

Dentre nós, a professora Hildegardes Vianna, no livro Bahia já foi assim... traz informações sobre a curiosa relação, às vezes esquecida, entre a comida e a morte presente na cozinha baiana. Às portas da morte, dentre as pessoas que iam ajudar, estava uma cozinheira.

Hildegardes nos oferece uma lista que inclui bolos, doces e comidas à base de peixe e mariscos, respeitando o interdito de não se comer carne. Tratam-se de "comidas para enganar a boca", oferecidas durante a sentinela, como o bolachão, a paciência, a língua de sogra, cabeça de frade, o pão fatia, cuscuz, leite e café.

Era, todavia, no chamado café da missa, realizado no sétimo dia, que todo o prestígio do ente querido se mostrava através de iguarias que começavam a ser preparadas na madrugada do dia da missa: cuscuz de arroz, cuscuz de milho, cuscuz de mandioca, cuscuz de tapioca, bolos, banana da terra, fruta pão, batata doce, beiju, biscoitos, manteiga, pão, etc.

Outra comida associada à morte era a bacalhoada com leite de coco e azeite de dendê, sempre acompanhada do feijão de leite e o desaparecido arroz de viúva.

É bem provável que os africanos tenham difundido nestas ocasiões o consumo do efó, um cortado de folhas geralmente feito com a taioba, embora possa ser feito com outras folhas.

Beber o morto

Não podemos nos esquecer do ritual antigo chamado de "beber o morto", ainda hoje mantido dentre nós, quando histórias sobre o falecido são rememoradas em torno da cachaça. Aliás, um estudo sobre tal bebida, chamando a atenção dos seus aspectos simbólicos, ainda está para ser feito entre nós.

É digno de nota, também, a celebração dos mortos dedicada em alguns países como a Bolívia e, em especial, a Venezuela, quando bebidas, bolos, doces e pães são oferecidos aos antepassados.

Dentre estas, se destacam os doces de abóbora, as caveiras de açúcar e o pão dos mortos, um pão adocicado, consumido apenas no dia de finados.

Nas culturas orientais, como a japonesa, o arroz oferecido no túmulo é outro símbolo da presença dos vivos no mundo dos mortos.
Estes, ao lado de outros exemplos, mais do que nos fazer refletir sobre a brevidade da vida, nos colocam diante da importância da comida como responsável em nos manter vivos.

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