PERFIL
A alegria da criação de Olga Gómez
Com 28 anos e um diploma universitário em artes, Olga Gómez chegou à capital baiana de férias
Por Gilson Jorge
Em 1986, uma argentina afrodescendente desembarcava em Salvador depois de uma longa e cansativa viagem de ônibus, um trajeto de mais de 4 mil quilômetros, que por terra dura mais de dois dias.
Com 28 anos e um diploma universitário em artes, Olga Gómez chegou à capital baiana de férias. Mas deixou para trás o trabalho de professora de artes plásticas para estudantes do fundamental e fincou raízes na Bahia.
"Não era um trabalho para mim. Você acaba ficando maluca com tantas crianças", afirma a artista, que na soma das diferentes turmas era responsável por 700 estudantes. Ao chegar a Salvador, Olga preferiu zerar a conta e começar outra vida. Foi uma viagem épica, para a jovem órfã que não tinha deixado vínculos familiares no país vizinho e, portanto, estava livre para escolher o seu destino. Olga aproveitou as paradas em estações rodoviárias para registrar pessoas com o seu desenho.
Em Salvador, encantou-se com a beleza ordinária presente nas ruas, como as laranjas descascadas e à mostra no comércio ambulante. Paisagens e soteropolitanos a seduziram. "A cidade era muito linda e a gente não precisa de muita coisa também. Eu era jovem e me sentia aventureira. Já não me sinto mais aventureira", diz a artista, referência nacional em teatro de bonecos e vencedora por seis vezes do Prêmio Funarte.
A Bahia também mexeu com as inspirações da talentosa artista portenha. Novos materiais surgiram como matéria-prima. Na sala do Museu de Arte da Bahia onde o seu trabalho fica exposto até 23 de fevereiro na exposição Olga Gómez - Alegria da Criação, ela aponta para uma boneca e dá um exemplo da diversidade de materiais.
"Essa cabeça foi feita com um coco", diz ela, com uma entonação de voz que expressa uma certa admiração: "Um coco, uma casca de coco. Olha como ela fica perfeita!", enfatiza, antes de assinalar também o couro vindo de Feira de Santana e a madeira de cedro como base de seu trabalho.
Uma obra que em 1997 chamou a atenção da diretora de teatro Nehle Franke e rendeu o convite para a criação de bonecos como o Anjinho, destaque da peça Divinas Palavras. "Os bonecos complementavam os atores e ficavam muito bonitos em cena, com a iluminação de Irma Vidal", lembra.
O sucesso da peça e, também dos bonecos, foi um bálsamo para a artista, que tinha voltado muito triste de uma viagem à Argentina, por razões pessoais. "A arte me salvou. A arte salva", prega Olga, que no mesmo ano começou a encenar com A Roda o espetáculo A Cobra Morde o Rabo, com a qual venceu o Prêmio Braskem de Teatro. Sobre morar aqui, a artista declara: "Eu acho que me traz tristeza Buenos Aires. Quando eu chego a Salvador, fico feliz muito feliz. Sempre que volto de qualquer cidade eu choro, emocionada por estar em Salvador", afirma.
Afinco
Olga segue desenhando, com o mesmo afinco dos tempos das paradas nas rodoviárias brasileiras. A exposição no MAB tem 45 de suas gravuras. Ilustrações de momentos domésticos de sua filha, a pianista Amanda Smetak, uma moça que aguardava na fila do banco, uma menina qure posou para ela dois dias depois da morte de sua mãe. A arte ajuda a curar. A exposição é a primeira a trazer desenhos de Olga Gomez emoldurados, o que foi possível graças ao Programa Funarte de Apoio a Ações Continuadas.
A moça que trouxe da Bacia do Prata a sua arte tinha algo a mais na cabeça, além do trabalho, que era conectar-se com a cultura africana, à qual não teve acesso em seu país natal.
"Eu vim atrás da minha ancestralidade, da minha avó negra que largou dois filhos para casar com um homem que a maltratou. Eles tiveram quatro filhos juntos e ele a fazia dormir ao lado da cama", conta a artista, que produziu bonecos de personagens históricos, como o advogado baiano Luiz Gama e sua mãe, Luiza Mahin.
A sua exposição trouxe à Bahia os dois parceiros de Olga no grupo A Roda, a artista visual Stella Carrozzo, que reside em Buenos Aires, e o diretor de produção do grupo, Marcus Sampaio, que mora em Toronto.
"O que mais me impressiona no trabalho de Olga é a expressividade que ela consegue passar nas peças que ela cria. Seja no traço do desenho, seja no corte da madeira ou nas figuras de couro", afirma Marcus Sampaio, que declara ter se emocionado ao reabrir os baús com os bonecos para ajudar a montar a exposição.
O baú com os adereços da peça A Cobra Morde o Rabo, por exemplo, estava fechado há mais de 15 anos. O baú de Amor&Loucura, por sua vez, não era aberto desde 2008, quando A Roda fez uma turnê nacional no palco giratório do Sesc. "Foram os bonecos que nos aproximaram e os bonecos nos mantêm juntos", diz Marcus. Com os bonecos de Olga, eles participaram do Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Canela, no Rio Grande do Sul, e do Festival Mondial des Theâtres de Marionettes, na França.
"Foi muito especial, conhecemos os trabalhos de outros grupos, técnicas que a gente não conhecia. Na volta ao Brasil, a gente decidiu montar A Roda", conta Marcus.
A exposição tem uma seção interativa, em que se podem movimentar peças através de manivelas ou cordões. Como o cavalinho de madeira inspirado na cultura tailandesa, que Olga levou dez anos para dominar a mecânica dos movimentos. Mas uma vez que compreendeu a dinâmica produziu rapidamente mais de 20 cavalinhos.
Mas nem toda interação moderna apetece a Olga, que tem saudade dos tempos em que chegou a Salvador e não precisava disputar a atenção das pessoas com os celulares. Ela, por sinal, não usa o dispositivo e responde a contatos profissionais pelas redes sociais. "Eu prefiro assim, apesar dos incômodos que isso me traz. Algumas pessoas se enfurecem", afirma a artista, antes de disparar uma gargalhada. "Eu não ligo muito para conforto. Meu negócio é trabalho e esforço", arremata Olga.
A artista aprecia pegar transporte público, e no domingo passado ao avistar dentro de um ônibus um personagem que merecia ser retratado lamentou não ter ido à Estação da Lapa com o seu caderno e um lápis. "É onde está o povo, é onde eu gosto de estar", declara.
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