MUITO
A boemia no Largo Dois de Julho se nutre e se renova com música e histórias impagáveis
Por Gilson Jorge | Fotos: Adilton Venegeroles | Ag. A TARDE

O Bar Sem Nome, na Vila Baiuca, costuma ficar com as mesas cheias, dentro e fora, nas noites de sexta e sábado. Casais apaixonados e grupos de amigos discutem política, futebol ou literatura, e almas desgarradas, vez por outra, levantam da cadeira ou deixam o balcão e introduzem dinheiro na jukebox para criar a própria trilha sonora. Celebrar a vida, curtir sua fossa. Mas com a chuva que cai ininterruptamente desde o início da noite, todos se aglomeram lá dentro. A maioria chegou antes do mau tempo, mas há também Gina, uma transformista opulenta que sai pelos bares do Dois de Julho vendendo deliciosas esfirras e, nesse dia, realmente parou para passar uma chuva.
Há uma moça, bela e de sorriso contido, que se põe encantada à frente do terminal de músicas. Talvez conhecendo o repertório do bar, talvez em sua cabeça estivesse tocando uma canção que não aparece no display. Elena Stetsurina aperta com insistência os botões de Up e Down, em busca de uma canção do Kaoma, mas se contenta com Happy new year, do Abba. Em algum lugar das redondezas, sempre haverá uma canção ou uma história para quem está à procura do coração da noite.
Pensei encontrar por ali Teresa, a jovem poeta que dias antes publicou no Facebook o clipe de There is a light that never goes out, do Smiths, com uma frase que denotava seu gosto em ir ao Bar do Nó e ouvir música dos anos 80. Imaginei que talvez fosse uma falsa pista e que a encontrasse no balcão, acompanhada, dançando Get lucky, do Daft Punk.
Eu estou quase entrando no bar quando vejo duas amigas junto a um grupo de jovens. Um menina que conheço de vista está comemorando seu aniversário na mesa ao lado e me sinto constrangido a ir lá dar um abraço. Depois do segundo copo da cerveja que divido com Elena, a aniversariante pede que eu lhe pague um litrão como presente de aniversário e, sorrateiramente, arrasta duas garrafas vazias para a minha mesa. Nem lembro como se chama, mas é um desses nomes esquisitos que homenageiam pai e mãe. A patife nem me ofereceu uma fatia do bolo. Antes que se forme um engradado, levanto e convido minha amiga para tomar uma no balcão.

New wave
“Esse bar me faz lembrar da minha adolescência na União Soviética. Uma vez pensei em uma canção do Blondie e minutos depois estava tocando aqui”, diz Elena, que tinha em casa um LP da banda nova-iorquina, conseguido pelo seu pai na Europa Ocidental, na década de 1980. “Eu gosto, mas também me dá um pouco de tristeza, porque é a música de uma época que não vai voltar”, afirma Elena, que sente falta das músicas inocentes da new wave e do ritual que ela e seus amigos tinham de gravar, como um troféu, a música conseguida com tanta dificuldade.
Normando Batista, o Nó, ouvia Blondie e toda a música dos anos 70, 80 e 90 que está no seu pendrive, desde a juventude em São Gabriel, na Chapada Diamantina, onde também tinha um bar.
Candidatou-se a vereador, perdeu a eleição de 2004 e, desgostoso com a política local, veio para Salvador atrás do irmão com R$ 50 no bolso e sem o endereço do parente. Encontraram-se, por acaso, na Praça da Piedade, e Nó foi com o irmão para um sobrado na rua Areal de Cima, onde embaixo havia um bar fechando as portas. O dono lhe pediu uma fiança e, depois de pedir dinheiro à família, o recém-chegado imigrante assumiu o negócio. Agora que conseguiu se estabilizar e já tem um imóvel próprio em sua cidade natal, Nó considera a possibilidade de fechar o bar e voltar para casa.
Na esquina da mesma rua, em direção ao largo, a Panificadora São Vicente é o lugar da farra tipo família. Quase todos os clientes se conhecem e a intimidade transformou o nome em Bar da Marli. Marli Brito é a dona, quase sempre séria e de olhar firme, que exibe com orgulho em uma das paredes a foto tirada com Maria Bethânia. Foi dia 16 de março deste ano que elas se encontraram. A cantora conversava com parentes e amigos na pracinha em frente ao bar e em um momento pediu para usar o banheiro. No caminho, encontrou o piano que há dez anos anima a clientela. Às vezes, é possível tomar café da amanhã, almoçar ou tomar umas cervejas escutando música clássica, chorinho ou MPB.
Mas poucos tiveram a sorte de testemunhar quando a “abelha-rainha” sentou-se e tocou por cinco minutos o instrumento que serve para exercícios de vizinhos musicistas.
Walfran Santos passa até duas horas por dia sentado ao piano. “De vez em quando, as pessoas estão aqui almoçando e alguém pede uma música”, diz o violonista maranhense que mora na Bahia desde 1979, quando começou a estudar piano, e que já se acostumou a interromper o ensaio para tocar Parabéns pra você quando há um grupo comemorando aniversário. “Maria Bethânia prometeu que vai mandar afinar o piano”, diz Marli.

Notívagos
“Não existe bairro como o Dois de Julho, nem o Rio Vermelho é assim”, afirma o comerciante José Santos, que há 40 anos conduz o Sebo Mimosa, na verdade um cubículo na Rua do Sodré que começou a reunir artistas e notívagos desde a década de 70, quando os poetas se reuniam em saraus na Praça da Piedade e depois cruzavam a Avenida Sete e a Carlos Gomes em direção ao bar. Até hoje, poetas de diferentes gerações se juntam por ali, para recitar e beber.
Santos orgulha-se de ter servido Jaques Wagner em seu bar na década de 1980, quando o PT ainda estava em formação. De conversas ocorridas em suas mesas com gente que participava do Projeto Caymmi. E de artistas que passaram por lá. “Beto Silva, que fez Prefixo de verão, trabalhou aqui comigo”, diz Santos, referindo-se ao compositor falecido em 2012.
A chuva forte, hoje, retém cinco clientes no interior do Mimosa. Ninguém se atreve a sair, mas um homem com mais de 1,80 m, forte e grisalho aponta lá fora e corre em direção ao bar. Com as roupas pretas encharcadas e sandálias havaianas, abre espaço junto ao balcão e pede uma dose de cachaça. Alguém lhe oferece um banco. Ele agradece, bebe em único gole e bate o fundo do copo na madeira. “Precisava tomar uma quente”, diz, sem se dirigir especificamente a alguém e volta correndo para a chuva.
De vez em quando, com tempo estiado, também passa gente correndo em frente ao bar. Mas quase sempre é algum jovem que arrancou o celular da mão do dono e dispara em fuga pela Rua do Sodré. Por isso, o Mimosa não fica aberto depois das 22h. O próprio Santos recomenda aos clientes que escondam seus pertences.
O clima boêmio do bairro existe desde os anos 30 e 40, quando a Boate Clock recebia os programas de auditório da Rádio Sociedade, que tinha como atração artistas do naipe de Riachão, então em início de carreira. O casarão, que depois abrigou um motel, se transformou recentemente no Clock Marina Residence.
Em 1946, a fundação da Universidade Federal da Bahia trouxe à cidade os cursos superiores de teatro, dança e música, pioneiros no país, e aumentou a presença de artistas e intelectuais no bairro, numa época em que o Rio Vermelho era pouco mais do que uma mistura de casas de veraneio com vila de pescadores.
Três anos depois, acontecia o ápice com a inauguração do Anjo Azul, bar criado pelo artista plástico Carlos Bastos, que atraía os artistas e farristas mais conhecidos da cidade. O bar tinha murais pintados por Bastos e manteve exposições de Carybé, do pintor austro-brasileiro Lothar Charoux e do próprio dono. Era frequentado pelo escritor Jorge Amado e pelos artistas plásticos Calazans Neto e Mário Cravo. Seu Santos, do Sebo Mimosa, conheceu o bar já em seu período decadente. “Eu não frequentava, porque tinha meu próprio negócio, mas entrei para conhecer”, diz. Pouco depois, o bar fechou. A casa que abrigava o Anjo Azul, na Rua do Cabeça, hoje é ocupada por um restaurante chinês.
No final da década de 60, o Dois de Julho ganhou uma requintada sala de cinema, com decoração italiana, com 780 lugares. O Cine Capri foi um monumento cultural do bairro até ser destruído por um incêndio em 1981. No seu lugar foi aberto o Hotel Capri, que diariamente encena romances e dramas da vida privada. Há o caso de uma mulher que trabalhava na região e flertava com um cara que sempre via nos bares. Sonhava em se envolver, mas tinha que esperar o dia do pagamento. Quando recebeu o salário, foi tomar umas cervejas com o galã e, depois de uns amassos, se mandaram para o hotel. Amanheceu sozinha e, ao checar a bolsa, viu que foi roubada. Noites de Cabíria.
Há também Lola, uma ex-prostituta que circula pelos bares em busca de alguém que ouça seus casos, lhe pague uma cerveja e, eventualmente, a leve para o Capri. Com as pernas cruzadas e a mão esquerda sobre o joelho, lança ao alto uma baforada de cigarro e começa a contar voluntariamente passagens de sua vida. Faz questão de exibir um certo ar de desaforo, de que não liga a mínima para opiniões alheias. Revela que prefere beijar mulheres, mas não abre mão de sexo com homens.
Um dia, ela aparece com um acompanhante no mesmo bar em que estou, senta-se à mesa ao meu lado e acena sorridente. Retribuo a saudação e imagino que talvez esteja em andamento uma ida ao Capri, por isso trato de não puxar conversa. Não adianta. O cara resolve me contar uma piada sem graça e eu sorrio educadamente. O suficiente para o sujeito engatar uma sequência de tentativas malsucedidas de chistes. Peço a conta e vou embora.
Manoel, garçom veterano do restaurante Líder, um ícone do bairro, sabe a cerveja que eu bebo e se dirige ao freezer assim que me enxerga. Pergunta onde vou sentar e se quero mais alguma coisa. Uma dose de Fundador. Indaga, meio afirmando, se é cowboy e diz que uma bebida dessas toma-se pura, mas pondera: tem gente que pede gelo. Sorrio e olho ao redor. Não há conhecidos, coisa rara. Quando acontecem passeatas no Centro durante a semana, é impossível não sair entre as mesas saudando as pessoas. Quem é esperto deixa a manifestação na altura da Piedade, dobra à esquerda e vai tentar garantir uma mesa
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