OLHARES
A casa, atelier, galeria e memorial de Maria Adair
Pensar no fazer artístico implica em questionamentos acerca das finalidades, utilidades e sentidos
Por Luiz Freire*

Pensar no fazer artístico implica em questionamentos acerca das finalidades, utilidades e sentidos; nas expressões da vontade, de gênero, de tecnologia e vínculos sociais.
A incursão na casa, atelier, galeria e memorial de Maria Adair ativa dois dos nossos sentidos, o visual e o gustativo. Especialmente o visual domina todos os ambientes, dado que os resultados de sua ação artística está em todos os móveis da casa: nas vidraças das janelas, nos tecidos dos estofados, na tralha doméstica que serve à mesa, nas cadeiras, nos objetos que integram os ambientes, nos fragmentos modificados pela artista e naqueles que revelam as conexões com suas origens, com a cidade onde mora e o mundo.
Aparência e essência dialogam na representação de um cotidiano diferente de todos os outros, compartilhado com um público limitado e tramado com os saberes e fazeres de dois de seus filhos (Murilo e Moema), habitantes da casa e responsáveis pelos estímulos gustativos, ensinando a arte culinária e o preparo de jantares para grupos de turistas.
Maria Adair iniciou-se na pintura nos anos de 1950, no Ginásio Bom Jesus, das missionárias de Jesus Crucificado. O colégio funcionava na casa que foi do Comendador Bastos, cujas paredes eram decoradas com pinturas de Manuel Lopes Rodrigues, professor da Escola de Belas Artes (EBA), da Ufba. Tais pinturas despertaram o interesse da jovem, especialmente uma que a madre Emília modificou, transformando o Mercúrio em Nossa Senhora das Dores, como também encobriu com véus diáfanos, a nudez das ninfas existentes no salão nobre.
A madre Emília passou a ensinar pintura para as interessadas, entre elas Maria Adair. Apresentou alguns cartões-postais para serem selecionados e reproduzidos. Depois desse primeiro aprendizado, ingressou no Instituto Central de Educação Isaías Alves – Iceia, onde teve aulas de artes industriais, aprendendo a desenhar e recortar as formas na madeira.
O pai, Geir Magalhães, quando prefeito de Itiruçu, promoveu uma exposição do pintor Bunge, artista alemão, ocasião em que adquiriu duas pinturas (ruas de Maracás), que constituíram as primeiras telas da casa.
Finalizado o Curso Ginasial, em 1955, a família decidiu mudar para Salvador, para que as filhas pudessem estudar no Colégio Central, onde conheceu Calazans Neto.
Nos anos 1960, já casada, retornou a Itiruçu, ocasião em que resolveu pintar sobre gamelas, vasilhames presentes nas casas rurais. A primeira pintura foram uns antúrios, e outra que intitulou o “átomo”. Essas gamelas estão em uma das paredes da casa.
Na década de 1970, ensinou no Colégio 2 de Julho e em uma escola pública, ao tempo que estudava Licenciatura em Desenho e Plástica na EBA. Seus trabalhos artísticos atendiam às orientações de cada um dos dez professores da escola, responsáveis por ensinar a técnica de sua especialidade (Dagmar Pessoa, Emídio Magalhães, Onias Camardelli, Jamisom Pedra, Rescala, entre outros). Surpreendeu os colegas com pinturas sobre gamelas na disciplina de Emídio Magalhães.
Depois de formada, ingressou como professora na EBA, a convite da chefe do Departamento de História da Arte e Pintura, Dagmar Pessoa, através de contrato temporário. No mesmo período, ensinou no Colégio Maristas, e à noite, artesanato em uma escola pública. Em 1979 conquistou a Bolsa Fulbright, viajando no ano seguinte, depois de vencer uma série de entraves relacionados com a sua manutenção e a de seus filhos, pois há tempos que havia se separado do marido e assumia sozinha as despesas da casa e da educação dos filhos.
Nos EUA, passou a utilizar a pintura em acrílica, o clima obrigava a deixar frequentemente as janelas fechadas, o que impedia o arejamento e a dispersão do cheiro da tinta a óleo.
Retornou a Salvador em 1983, reassumindo seus postos na docência na Eba e na escola estadual. Sua casa, no alto do Apipema, já era uma mostra do que se tornou a atual, do Chame-Chame.
Com a reforma do Pelourinho, na década de 1990, Adair alugou uma casa na Rua do Açouguinho e fez um atelier no andar de cima e um café embaixo. Seu filho Murilo, recém-chegado de Paris, responsabilizou-se pelo café criando cardápios variados de salgados e tipos de cafés, ficando famoso o café ao cubo, criação de Maria Adair com base em uma receita de Auta Rosa, mulher de Calazans Neto. Dotou a loja de um forno de cerâmica e passou a pintar pratos realizados por um oleiro. Desenhou e encomendou a reprodução de muitas camisetas em silk screen, inicialmente à oficina de Carlos José e depois à de Augusto Cesar, no Projeto Axé.
Passou a pintar tigelas de barro, colheres de pau, adquiridos no extinto Instituto Mauá; cabos de talheres em madeira torneada; cadeiras antigas e outros móveis antigos, gamelas, pratos, tigelas de cerâmica e vidros reciclados que modificava com corte de garrafas e jateamento, segundo os padrões criados pela artista. O atelier-café foi se fazendo como o microcosmo da casa atual.
O trabalho artístico de Adair transformou-se com o tempo. Nas primeiras exposições, desenvolveu sobre telas, gamelas e cabaças formas onduladas, orgânicas, similares ao âmago de frutos e sementes com brotos de abacates em composições de cromatismo vibrante. Essas formas sofreram alterações significativas com o desenvolvimento de uma pintura estruturada em tramas de linhas retas de grande efeito gráfico, resultante de um colorido enérgico, pausado por áreas pontuadas por lâminas metálicas. Os suportes variam intensamente, tanto os bidimensionais, quanto os tridimensionais, mantendo aquelas referências da vida no interior: cabaças, coités, gamelas, brinquedos de madeira e toda sorte de tralha produzida em série por artesãos.
Motivos e formas diversificam-se. No universo criado há séries figurativas que flertam com a pop art, ou um figurativismo interpretado com as tramas retilíneas. Destacam-se nessa produção o casario do Bairro de Santo Antônio Além do Carmo, enfeitado para a festa do 2 de julho; a imagem de Nossa Senhora da Conceição em seu andor e as flores ofertadas para Iemanjá.
Uma alergia à tinta acrílica forçou a artista a trabalhar com nanquim, obtendo um cromatismo mais reduzido e ganhando força das tonalidades escuras.
Os testemunhos do passado e do presente compõem a casa do Chame-Chame, revelando a artista e suas fecundas relações, constituindo-se no Memorial de Maria Adair.
*Doutor em História da Arte, professor da Escola de Belas Artes da Ufba e museólogo
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