CRÔNICA
A coragem nasce dos braços
Escritor reflete sobre onde, afinal, moram as emoções humanas e a verdadeira sabedoria do corpo

Por Franklin Carvalho*

Às vezes é preciso levar a sério um pressentimento qualquer ou uma comichão inexplicável na palma da mão ou na orelha. Será que tem alguém falando de você? Também é preciso levar a sério as mensagens dos sonhos.
Parece que o cérebro e a razão lúcida não bastam para nos guiar, porque frequentemente desandam para o equívoco. Ora, já vi muita gente inteligente cometer erros horríveis por falta de sensibilidade.
E, vocês sabem, quanto maior a presunção e a soberba, maior o tombo. Seria bom, então, contar com a intuição e uma certa sabedoria emocional, mas onde estariam situados em nós mesmos essas emoções sábias, esses sentimentos?
Uma boa pista seria procurar no estômago, pois dizem que é através dele que se conquista um marido ou uma esposa. Também ouvi dizer que é pela barriga que o homem chora, crescendo a pança toda vez que engole um sapo e um chopp. Mas o abdômen, por maior que seja, admitiria só esses tipos de amor e de ódio.
Já o coração é um órgão muito ocupado, muito demandado e ao mesmo tempo vulgar, ordinário, como os presentes baratos trocados nos Dia dos Namorados. Coitado, o coração é só uma carne que se esgota, bombeando sangue repleto de toxinas ou microplásticos ou cafeína.
Um pêndulo que faz tic-tac num relógio com as horas contadas. Certo, há corações mais nobres, como o coração de mãe, que está eternamente emoldurado na sala da infância de nossas memórias, brilhante ao lado do Coração de Jesus e da Santa Ceia. Mas existem também os corações impessoais dos anúncios comerciais, das campanhas políticas e das camisetas e bonés com “love“.
Bom coração mesmo é aquele que exigimos nos outros, enquanto escondemos o nosso do lado canhoto, a parte mais sossegada do corpo.
Outro local para procurar seria o fígado, que a medicina chinesa jura ser o centro de controle da raiva e do estresse. E o fígado é o único órgão capaz de se regenerar, mesmo quando perde 75% da sua carne. Nessa contabilidade, a gente vai tolerando os perrengues e se regenerando junto, fazendo das tripas a parte que falta.
Também ouvimos que os olhos são as janelas da alma. No entanto, há por aí almas com glaucoma e catarata, além de outras que deliberadamente fazem vistas grossas quando lhes convém. No balanço geral, a parte do corpo que parece produzir melhores propósitos são os braços.
A coragem nasce dos braços. Quem se ocupa, quem lava pratos ou cozinha ou faz cirurgias ou cuida do jardim ou embala o bebê ou cura feridos ou fecha pastéis e os frita há de obter dignas inclinações, e coragem para fazer ainda mais. Basta a pessoa olhar a quantidade de coisas que já resolveu para se empolgar novamente.
E mesmo quem for amputado ou estiver paralisado pode contar com outros braços, que nascem das suas vontades e de outros recursos. Novos membros adaptam o carro, forjam soluções, traçam uma curva, propõem uma geometria.
Elogiemos então os braços, estes parceiros que apontam para a frente e cujas cicatrizes, marcas de vacinação, tatuagens, contra-eguns, pulseiras, relógios e dores de cotovelo explicam muito bem a nossa história e o nosso comportamento.
Sim, uma mão lava a outra mas, se quiser dar uma mãozinha para um amigo, entenda que é o braço o que ele quer.
*Franklin Carvalho é autor de Tesserato – A tempestade a caminho (Ed. Noir)
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