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A crescente valorização de artistas baianos negros no mercado de arte

Grandes nomes sonham com a cena baiana inserida no mercado global

Por Gilson Jorge

04/06/2023 - 5:00 h
Um dos nomes na Bahia, Goya Lopes vê uma mudança no padrão de aceitação dos símbolos afro-brasileiros na arte
Um dos nomes na Bahia, Goya Lopes vê uma mudança no padrão de aceitação dos símbolos afro-brasileiros na arte -

Em 1984, o então estudante Ayrson Heráclito visitou a exposição coletiva Bahia-África, África-Bahia, no Museu de Arte da Bahia, e teve contato pela primeira vez com a obra de Mestre Didi, o sacerdote, escultor e pesquisador que se tornou um dos primeiros artistas negros da Bahia a levar seu trabalho para fora do Brasil com uma exposição individual em Buenos Aires, em 1965.

Mais vinculado ao sagrado do que às artes, Didi é um ícone de ambos, tanto do candomblé quanto da cultura afro-brasileira. Sem dúvida, ele abriu os caminhos para novas gerações inspiradas em seu trabalho. E Heráclito lembra de como ficou impactado pelo filme Orixá Ninú Ilé, sobre a vida do mestre, produzido pela viúva do sacerdote-artista, Juana Elbein dos Santos. "Ele diz que o dendê é o sangue vegetal", lembra Heráclito, agora professor e artista consagrado internacionalmente, que vê influência direta do mestre em sua obra.

Dez anos depois da morte de Didi, o sangue vegetal da arte baiana brota vigorosamente em outros solos, com a redescoberta nacional de nomes importantes como o escultor itaparicano Agnaldo dos Santos, morto em 1965, e do próprio Mestre Didi, que teve um conjunto de 29 de suas obras adquirido pelo prestigioso Museu Inhotim, em Minas Gerais, e está em exposição desde o dia 27 de maio.

Entre os artistas contemporâneos da Bahia, Ayrson Heráclito, com seu painel Ebó para o mundo, faz parte da equipe de sete artistas brasileiros que ganhou o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza, no último dia 20 de maio. Um prêmio inédito para o Brasil.

E, para completar o bom momento, pela primeira vez, dois baianos, a curadora, escritora e pesquisadora independente Diane Lima e o curador, antropólogo e pesquisador Hélio Menezes, participam da curadoria coletiva da 35ª Bienal de São Paulo, que acontece entre setembro e dezembro deste ano, com o tema Coreografias do Impossível. O sucesso em outros terreiros anima os artistas, mas levanta uma questão. Como dinamizar o sistema de arte no próprio estado e fazer com que a celebrada vanguarda baiana faça florescer um mercado local?

Entre o sucesso institucional e a timidez dos negócios, grandes nomes da arte baiana sonham com a cena baiana inserida no mercado global. Um levantamento feito pela feira internacional Art Basel e pelo banco UBS apontou que o mercado de arte globalmente atinge US$ 67,8 bilhões, números de março deste ano. Esse valor é mais do que quatro vezes o tamanho da economia baiana. Mas esse dinheiro se concentra nos Estados Unidos, na China e na Europa.

Conquista

Heráclito declara que o prêmio em Veneza é uma conquista muito importante não só para a sua carreira, mas para a arte brasileira, e avalia que o sucesso do sistema de arte depende de muitos fatores: "É importante também a absorção das obras pelo mercado, é isso que cria sustentabilidade, inclusive na carreira dos artistas".

No plano pessoal, as coisas vão muito bem. Heráclito expõe na Europa, Ásia, África e Estados Unidos. E este ano participa da Bienal de São Paulo com o também baiano Tiganá Santana. Mas, no que concerne ao mercado local, o artista considera que a situação poderia estar melhor se houvesse políticas públicas fomentando o agenciamento estético.

Ou seja, investir nas galerias existentes, na criação de novas unidades e em feiras de arte. "Em todo o mundo são as feiras que mobilizam a questão comercial no mercado de arte, além dos colecionadores. Na Bahia, a gente conta nos dedos quem são os mecenas e os colecionadores de arte", pontua Heráclito.

O artista avalia que o setor mobiliza um montante considerável, que não chega à Bahia: "Precisamos de mais curadores, críticos de arte que façam essa mediação com os artistas, mais jornalismo especializado". Para ele, existe toda uma cadeia que tem que ser pensada e, sobretudo, o incentivo às instituições públicas em museus, mas lembra que há exceções. "Mesmo sem dotação orçamentária, você consegue ver que o MAM Bahia, nesses últimos dois anos, promoveu exposições de qualidade".

Cotação

Sobre outros artistas baianos que estão em voga, ele cita Nádia Taquary, a quem chama de "estrela da arte baiana", menciona também Marepe, cuja valorização do trabalho está no patamar internacional, e Virgínia de Medeiros, sobre quem define: "Tem um trabalho muito importante".

Já dentre os jovens artistas, Heráclito aponta Tiago Sant’Ana, “que já está conseguindo colocar obras em coleções importantes. A cotação do trabalho dele só faz crescer", diz. Mas, para impulsionar novos nomes, Heráclito considera importante trazer para a Bahia uma feira de arte, nos moldes da Bienal do Livro.

Citado como destaque da nova geração, Tiago Sant’Ana concorda com o diagnóstico de Heráclito sobre a necessidade de mais galerias e de uma feira, mas declara ter dúvidas sobre a viabilidade dessa última. "Para criar uma feira de arte, seria necessário um estudo de mercado. Ou será que os colecionadores baianos que já frequentam as feiras renomadas do Sudeste as trocariam pela versão baiana?", indaga.

O artista considera que um ponto a ser atacado é que não houve uma renovação dos colecionadores de arte na Bahia: "Uma das estratégias seria fazer com que as gerações mais jovens se interessem pelo colecionismo".

Sobre o sucesso fora da Bahia, Tiago considera que a arte baiana tem um potencial histórico. "Por sua posição de vanguarda e experimentalismo e também por colocar questões que são caras, como a negritude e as identidades afrodiaspóricas, a arte baiana sempre teve uma produção destacada no Brasil, justamente porque os baianos trazem experimentos e conceitos de histórias e narrativas”.

Atenção

No que diz respeito ao momento atual, ele destaca que artistas que não entraram no mercado ou entraram de maneira insípida passam agora a ter mais atenção, como o próprio Mestre Didi e Agnaldo dos Santos, escultor itaparicano que foi assistente de Mário Cravo Júnior e, mesmo tendo morrido aos 35 anos, fez uma obra considerada uma continuação da cultura de esculpir da África.

Em novembro do ano passado, o Museu de Arte do Rio fez uma retrospectiva com 70 esculturas em madeira de Agnaldo. No último mês de abril, 50 dessas peças, que retratam orixás e figuras humanas, entraram em exibição no Museu de Arte Moderna da Bahia. "Essa valorização institucional e, consequentemente, do mercado, vem por esse caráter que une experimentalismo profundo e inédito com essa característica cultural e as questões da subjetividade baiana, como as identidades afrodiaspóricas”, sublinha o artista.

A pandemia permitiu aos artistas pesquisar e se organizar. "Foi um tempo em que pude refletir sobre o meu trabalho e produzir novas obras", diz Tiago. Ainda existe a necessidade de o artista baiano trabalhar com galerias no Rio e em São Paulo por uma questão de escoamento da produção. "Infelizmente, não há em Salvador um número proeminente de galerias".

Para ele, faltam políticas públicas de incentivo como os editais setoriais que incentivavam de alguma maneira as artes visuais. "Alguns artistas migram para outras áreas, como o design, para atuar". E também a evasão geográfica, com a busca de outras cidades para trabalhar. "Eu, por uma questão política, continuo em Salvador, apesar de viajar bastante para mostrar meu trabalho. Salvador é meu lugar no mundo, mas a gente precisa se conectar a outros lugares".

Atualmente, ele trabalha em uma pintura de grandes dimensões para a exposição Dos Brasis - Arte e pensamento negro, no Sesc Belenzinho, em julho, e prepara um estande solo para a ArtRio, em setembro. No ano que vem, ele estará na curadoria de uma feira internacional de arte cujos detalhes serão divulgados em breve.

Um dos nomes de grande destaque na Bahia, Goya Lopes é um exemplo de artista que se mantém em dois polos: a produção de arte visual e o design de moda. A pandemia e o esvaziamento do Centro Histórico tiveram um grande impacto na sua rotina. O ateliê no Pelourinho fechou e ela transferiu sua produção para Cosme de Farias.

Goya vê uma mudança no padrão de aceitação dos símbolos afro-brasileiros na arte. “O mercado na Bahia nesse momento tem uma condição nova que é a inclusão das formas afrodiaspóricas e seus conteúdos tão negados anteriormente. Só poucos ousavam. Mas exposições com esse tema cada vez são mais constantes e aparecem sempre novos talentos”, afirma a artista e designer. “O mercado, de modo geral, tem buscado muito enxergar os processos das nossas obras, é como quisessem participar da nossa jornada e amor com as nossas criações”.

Uma das curadoras da Bienal de São Paulo neste ano, a escritora e pesquisadora Diane Lima enxerga um momento histórico na arte brasileira. “Ter dois curadores negros baianos no evento é uma vastíssima contribuição para a arte na Bahia”, afirma Diane, que é natural de Mundo Novo e mora desde 2014 em São Paulo, onde fez mestrado em cultura e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Sua linha de pesquisa acadêmica inclui o questionamento dos paradigmas do sistema de arte e propõe modos de produção que sejam menos hierárquicos e mais multiculturais.

Para Diane, há uma necessidade de formação de novos curadores no mercado de arte e essa é uma oportunidade de contribuir para investir em mão-de-obra qualificada no setor. “O importante hoje é investir na formação de jovens artistas, em plataformas e na interlocução com projetos”, afirma a curadora, para quem existe um ecossistema que ainda pode ser melhorado. Ainda este ano, Diane deve lançar pela Fósforo Editora o livro Negros na Piscina, sobre o momento dos artistas afro-brasileiros.

Expressão do povo negro

Filha de Mestre Didi, a dançarina, cantora, professora e pesquisadora das artes afro-brasileiras, Inaicyra Falcão, tem um olhar aguçado sobre esse momento de valorização de artistas negros baianos. “Está se abrindo espaço para a expressão do povo negro com a sua história”, pondera. Mas há um tema em especial que a preocupa, o destino do legado de seu pai.

Por questões legais, ela não pôde acompanhar de perto a transferência de obras de Mestre Didi para o Museu Inhotim e diz nem ter certeza sobre a origem das peças, uma vez que parte do acervo havia sido entregue em comodato ao Museu Afro Brasil, em São Paulo, e ela não tem conhecimento sobre o destino de todo o acervo.

“A obra de Mestre Didi está em uma situação muito delicada, porque enquanto ele deixou a parte da religião bem organizada, com cada pessoa no seu cargo, a obra ficou com a viúva, que está com a saúde debilitada e passou uma procuração para uma pessoa. E essa pessoa eu não entendo bem o que ela quer fazer, o que ela acha, eu não sei bem”, afirma Inaicyra.

A pesquisadora tem dúvidas se seria viável manter o acervo em Salvador. "É um material que demanda muito cuidado, a gente não sabe quem poderia cuidar, qual órgão teria esse compromisso. No Museu, tinha uma infraestrutura muito boa, tinha ar-condicionado. Eu fui lá ver. Não fui depois que Emanoel Araújo morreu [setembro de 2022]”, declara a professora.

Legado de Mestre Didi à parte, Inaicyra também marca presença este ano na Bienal de São Paulo, com o trabalho Tramas Criativas de Corpo e Ancestralidade. Pesquisadora renomada com passagens por universidades da França, Estados Unidos, Inglaterra e Nigéria, ela tem seu trabalho marcado pela introdução da cultura afro-brasileira em espaços de tradição eurocêntrica, além de ser uma referência no canto lírico, nas tradições yorubás, no estudo das danças e artes cênicas brasileiras. Segundo Diane Lima, a curadoria ainda está definindo como será a participação de Inaicyra na Bienal.

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