RAINHA DO MAR
A devoção a Iemanjá em diversas tradições do candomblé
Na nação Ijexá, a principal homenagem a Iemanjá não é realizada neste dia 2
Por Pedro Hijo
Tão profunda quanto as águas das quais Iemanjá toma conta, a adoração ao orixá reúne força, generosidade e beleza. Conhecida como a Rainha do Mar, a divindade é celebrada neste domingo em Salvador. Em meio a cestos, flores e perfumes, cada nação do Candomblé a reverencia com rituais específicos que variam de acordo com as tradições de cada casa.
Na nação Ijexá, a principal homenagem a Iemanjá não é realizada neste dia 2, mas no fim de um ciclo de celebrações de orixás entre os meses de maio e junho. É o que explica Ìyá Márcia d'Ògún, liderança espiritual do terreiro Ilê Axé Ewá Olodumare, em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador: “Não sai um presente exclusivo do nosso terreiro do dia 2. A gente celebra Iemanjá durante o ciclo, que é encerrado com um presente às aguas”.
Isso não impede que os integrantes do terreiro façam suas oferendas neste domingo. Ìyá Márcia explica que a louvação nesta data começou quando pescadores que sofriam com uma temporada difícil de pesca foram orientados a louvar Iemanjá.
“Eles começaram e, assim, a celebração se transformou nessa grande festa popular com maior representatividade do povo de terreiro”, diz a ela, que também é coordenadora do núcleo de Lauro de Freitas da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) e do Conselho InterReligioso da Bahia (Conirb).
A nação Ijexá, da qual a ialorixá faz parte, é conhecida como a “nação das águas”, e seus membros como os “povos das águas”. “Mas Iemanjá tem uma importância muito grande para o povo de Candomblé, seja qual for a nação. Ela é a mãe de todas as cabeças”, destaca Ìyá Márcia.
Enquanto o azul e o branco prevalecem nas roupas de quem vai ao Rio Vermelho neste domingo, a Ialorixá do Ilê Axé Ewá Olodumare, explica que não existe uma cor específica para saudar Iemanjá: “Na celebração para as iabás [orixás femininas] vestimos roupas coloridas, com cores alegres”.
No Terreiro Ogum de Kariri Kilombo Kayá, da nação Angola, as oferendas já foram entregues. A casa, localizada no bairro da Barra, em Salvador, tem a tradição de levar presentes ao mar no segundo domingo de janeiro, e ocorreu no último dia 12. As oferendas foram para Kaiala, generosa divindade das águas louvada pela nação Angola que, no Brasil, tem relação com Iemanjá. Esse é o 101º ano que o terreiro faz a celebração. "No Brasil, o culto do Candomblé se mesclou com outras religiões de matriz africana", diz Taata Sérgio, líder da casa de origem banto.
Neste domingo, o povo do terreiro comandado por Sérgio vai até o Rio Vermelho para prestigiar a festa. "A Iemanjá do dia 2 de Fevereiro tem essa característica de reunir todos os segmentos religiosos", diz.
Diferentemente da nação Nagô, o povo da Angola, explica Sérgio, não cultua orixás e, sim, inquices. "Nkisis", em quimbundo, significa "sagrado" e representa as energias da natureza.
As homenagens para a inquice Kaiala começam com a arrumação dos balaios de oferendas que são levados em uma procissão até o Porto da Barra. Lá, os membros do Ogum de Kariri Kilombo Kayá tomam os barcos e levam os presentes para o alto mar.
O ritual se encerra com uma festa pública no terreiro. O toque final é um chamariz para a comunidade local e povos de outras casas que participam da confraternização.
Taata Sérgio instituiu um costume que antecede o domingo em homenagem a Kaiala. No dia anterior, logo na primeira hora da manhã, a inquice Dandalunda, das águas doces, também recebe presentes. Se Maria Bethânia canta que "dentro do mar tem rio", todas as águas merecem a homenagem. "É uma forma de saudar a nossa relação com a natureza", explica.
Ritos próprios
No Terreiro Ilê Oba L’Okê, da nação Ketu, em Lauro de Freitas, os membros da casa oferecem arroz para Iemanjá para compartilhar a comida favorita da divindade com os frequentadores. A tradição tem mais de uma década.
"A maioria dos terreiros possui datas específicas para celebrar Iemanjá, com ritos próprios", explica o babalorixá do terreiro e antropólogo Vilson Caetano.
Para o Ilê Oba L’Okê, o segundo dia de fevereiro é um momento de aproximação com visitantes e curiosos que estão na cidade por causa do verão. "A gente orienta para que façam os presentes, dá banho de folha neles, faz jogos. São maneiras do nosso terreiro participar da festa".
Vilson pontua que, para ele, o 2 de Fevereiro não é uma festa do Candomblé, ou seja, não segue os preceitos e obrigações da religião, “mas é um culto muito importante para a cidade”.
O presidente-fundador da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA) e ogã do Terreiro Hunkpame Savalu Vodun Zo Kwe, Leonel Monteiro, conta que a travessia do Atlântico no processo escravagista pautou o culto a Iemanjá no Brasil.
Ele explica que, apesar da forte relação com as águas salgadas, o orixá chegou ao país sob o nome de Yemoja e como entidade da água doce, e que o termo "Yeye Omo Eja" significa "mãe cujos filhos são peixes".
Assim como na nação Angola, o Terreiro Vodun Zo também começa a celebração com oferendas em águas doces. No primeiro dia de fevereiro, de madrugada, Oxum, orixá dos rios e cachoeiras, recebe presentes. A homenagem antecede os festejos de Iemanjá. "Primeiro você adoça o coração, depois salga os pés", diz Leonel.
Líder espiritual do Hunkpame Savalu Vodun Zo Kwe, da nação Jêje Savalu, Doté Hamilton revela porque conduz os membros da casa para prestar homenagem a Iemanjá em águas doces: "Para a gente, ela é a mãe do rio".
A casa respeita a comemoração do dia 2 de fevereiro, no entanto, segue um calendário de celebrações regido pela mãe das águas. "É o orixá quem pede", diz. De acordo com Hamilton, todas as celebrações devem ser respeitadas: "Iemanjá é água e onde tem água tem que ter vida".
Respeito
Em 2016, o templo liderado por Doté Hamilton foi o primeiro a ser tombado pelo município de Salvador, com base na Lei de Preservação do Patrimônio Cultural da cidade. A iniciativa foi impulsionada pela associação presidida pelo ogã Leonel.
Segundo ele, a AFA tem como objetivo aproximar as casas de axé dos órgãos públicos e, assim, fomentar ações políticas que apoiem religiões de matriz africana.
"É um disparate que a verba pública seja usada exclusivamente para reforma e manutenção de templos católicos e nunca para terreiros", afirma Leonel. O ogã fundou a associação há 22 anos para combater o racismo religioso.
Além do enfrentamento à intolerância promovido por organizações como a AFA, outra via de luta, para a Ialorixá Ìyá Márcia d'Ògún, é a representatividade em festas religiosas, como o Dia de Iemanjá. “Serve como instrumento para combater o ódio, o racismo e o terrorismo religioso. É uma pena que alguns pulem as ondinhas e sigam discriminando as pessoas”, afirma a ialorixá, em referência ao ritual que é amplamente repetido no dia 2 de fevereiro.
Liberdade religiosa
A ialorixá comemora a liberdade das pessoas de religiões de matriz africana para professar a fé delas nesta data. “É um momento para o povo de terreiro celebrar escancaradamente seu sagrado com uma adesão popular muito grande”. É também, diz Ìyá Márcia, uma data para agradecer pelo alimento que vem do mar.
“Mãe Iemanjá é tão bondosa que os peixes moram nas águas dela, mas o sal não consegue penetrar no peixe", diz. "É como devemos fazer: a gente deve ofertar às pessoas tudo de melhor in natura e o que vai ser feito com isso depois é da escolha de cada pessoa”, reflete a líder religiosa.
O babalorixá e antropólogo Vilson Caetano acredita que a festa para Iemanjá dá visibilidade ao povo de religião de matriz africana. "É um momento que nos empodera como pessoas negras e reafirma nosso potencial político", afirma.
Vilson diz que celebrar Iemanjá é homenagear também a resistência do povo negro. "Desde o momento que colocamos pé no Brasil, aprendemos a agradecer e retribuir", conta o antropólogo. "É uma festa para todas as tradições religiosas do nosso povo, para que a gente continue celebrando e resistindo".
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