MUITO
A dieta do passarinho
Confira a crônica de Evanilton Gonçalves
Por Evanilton Gonçalves*
Estava conversando com Taniguchi esses dias sobre o perigo da dieta do passarinho. É perigoso, Tani, lhe dizia. E ele, indiferente aos meus apelos, olhava pra janela e mexia a boca de um jeito que eu achava esquisito. Até pedi o apoio de Lili, mas eles, irmãos felinos, são sempre cúmplices. Fui ignorado. Ameacei: vou mudar a ração de vocês, viu? (pensando que nas entrelinhas estivesse subentendido que seria pra pior).
No dia seguinte, Taniguchi desapareceu. O mistério se dá pelo fato de eu morar no quarto andar de um prédio, cujo apartamento possui janelas protegidas por telas. Elas servem também pra que Taniguchi e Lili possam ficar debruçados vendo a vida dos outros e possam fofocar sobre o movimento da rua. Só me dei conta do seu sumiço no outro dia, às cinco da manhã, porque ele tem uma personalidade ninja e costuma desaparecer o dia inteiro pra dormir seu sagrado sono de muitas horas.
No dia anterior pela manhã, ele havia aceitado a contragosto a ração premium, a água fresca, o banheiro limpo e logo entrou no modo ninja. Lili seguiu seus passos até determinado momento, depois foi fazer o que gosta: ficar na sala sozinha, em frente à TV, reclamando da vida. Como quase todo adulto de origem pobre em pleno final de ano, reuni minhas últimas forças, segurei o choro pelos traumas da vida, ergui a cabeça e fui trabalhar. Trabalhei muito, fiquei cansado. À noite me joguei na cama como quem se joga num abismo. Apaguei.
Como eu ia dizendo, no outro dia, às cinco da manhã, constatei o sumiço de Taniguchi. Mais ou menos nesse horário ele tem o costume de usar sua habilidade ninja pra virar despertador: pula de cima do guarda-roupa em minha barriga, sobe na escrivaninha, abre a gaveta e tira lápis e canetas que se transformam em espadas. Com a estranha calmaria matinal, me assustei. Taniguchi?! Lili, deitada na cama ao meu lado, me olhou de um jeito confuso. Levantei. Taniguchi? Abri as portas do guarda-roupa. Taniguchi? Pulei na cama pra ver no alto. Assim segui por todos os cantos da casa. Perguntei: Lili, cadê seu irmão? Nada. A síndrome de fim do ano veio com força. No basculante do banheiro, vi pelos de Taniguchi e imaginei o pior. Passarinhos cantavam na antena.
Saí debaixo de chuva pra tentar encontrar ele na rua. Percorri o bairro. Ainda não eram seis da manhã. As pessoas que passavam cutucavam umas às outras, diziam baixinho ao me ver andando rápido, abaixando na rua, gritando com a mão na boca Taniguchi!: “Olha lá, coitado, tão jovem”. Apesar disso, eu seguia obstinado. Até que resolvi voltar. Narrei pra Adelmo, o porteiro, a situação. Olha na garagem, ele sugeriu. Nada.
O tempo, inevitável, passou em formato de algumas horas. Eu tinha que trabalhar. Voltei à portaria pra conversar com Seu Raimundo, o porteiro do novo turno. Com sua generosidade sem tamanho, ele me disse em um tom calmo: “Ele pode estar na laje subterrânea do prédio, mano”. Uma esperança inesperada surgiu. Ele indicou a escada extensível do prédio, perguntou a dois desconhecidos se poderiam me dar apoio e lá fomos nós. Eu já havia acionado os Bombeiros, que primeiro acharam que era trote, depois explicaram que não faziam buscas, apenas resgates, eu precisaria ter certeza de que o gato estava na tal laje subterrânea.
Depois de apoiar a parte superior da escada na parede e multiplicar seu tamanho, enxerguei a aventura involuntária em que me metia. A ideia de simular perigo me assusta. Por que razão eu viveria uma experiência de quase morte, assim, à toa? Era uma questão de emergência. Subi tremendo no ritmo da escada. Acessei à laje como se praticasse o rigoroso treinamento do filme Beau Travail, de Claire Denis. Me arrastei feito soldado, tirei um saco de ração do bolso, chamei: Taniguchi! Taniguchi! Da escuridão da laje subterrânea, dois olhos amarelos se acenderam.
*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)
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