MUITO
"A discussão sobre sangrar no uso da pílula é inútil"

Por Carla Bittencourt

Há quem diga que foi acidente aquele remédio usado para tratar distúrbios da menstruação ter funcionado para evitar gravidez. Há quem defenda que foi o resultado de uma pesquisa secreta, parceria entre uma feminista, uma milionária e um cientista. Seja qual for a teoria sobre o surgimento da pílula anticoncepcional, ela continua como símbolo da liberdade sexual que se tornou ao ser lançada, em 1960, revolucionando a vida da mulher ao permitir que o sexo fosse sinônimo de prazer e que os filhos só viessem quando (e se) ela assim desejasse. Para Camila Rabello, diretora médica da Angiclin – Clínica de Angiologia e Ginecologia –, ainda há um caminho de ajuste a ser percorrido, menos quanto à eficácia do medicamento do que seus efeitos colaterais. Ela observa que as últimas décadas trouxeram avanços, como as pílulas de baixa dosagem hormonal e as bioidênticas, aquelas que se comportam no organismo como hormônios naturais. Rabello, que atua como obstetra com uma abordagem de parto humanizado, reconhece que falta equivalência quando o assunto é responsabilidade de contracepção, o que pôde ser visto no final do ano passado, quando as pesquisas para uma pílula masculina foram interrompidas por causa dos efeitos colaterais. À Muito, a ginecologista falou sobre pesquisas, sobre planejamento familiar a partir de uma perspectiva social e refletiu sobre o uso ininterrupto da pílula, que evita que as mulheres menstruem. Para ela, essa discussão encerra uma polêmica inútil, uma vez que o uso da pílula, com ou sem pausa entre as cartelas, é o que traz consequências para o organismo.
A pílula ainda é símbolo de liberdade sexual como o que representou quando foi inventada?
Com certeza. A pílula continua sendo a possibilidade de a mulher exercer a sexualidade de forma livre. É como você consegue ter vida sexual despreocupada da gravidez indesejada.
Apesar de ter uma dose de hormônios bem mais baixa hoje, o anticoncepcional continua provocando efeitos colaterais, como riscos de problemas circulatórios, aumento de peso e diminuição da libido. Quais as alternativas para as mulheres que não desejam passar por isso nem engravidar?
Aí você teria que partir para métodos não hormonais: ou o uso do preservativo de rotina, que tem seus limitantes, ou o uso de DIU, que é o dispositivo intrauterino, sem hormônio, que vai garantir a prevenção da gravidez e a sexualidade sem as limitações desses efeitos colaterais. Há ainda métodos alternativos, mas que a gente não costuma indicar mais.
Cientistas da Universidade de Nottingham, na Inglaterra, divulgaram uma pesquisa mostrando que a nova geração de anticoncepcionais aumentava ainda mais o risco de trombose. A baixa dosagem não é suficiente para evitar essas complicações?
Não. A baixa dosagem minimiza as complicações, mas toda mulher exposta ao uso hormonal, em qualquer dosagem e de qualquer tipo, tem um risco aumentado de complicações vasculares. À luz dos estudos atuais, o que considero é que todo e qualquer uso hormonal agrega risco. Esse risco vai ser potencializado, ou não, nas mulheres que têm fatores de risco outros que se somam, como é o caso das mulheres obesas, das diabéticas e das fumantes. Mas as drogas, isoladamente, eu não considero uma pior ou melhor do que a outra. E a baixa dose é melhor do que alta dose, sem dúvida. Mas a escolha do tipo de droga tem que ser muito individualizada, específica para cada mulher.
Há mulheres que tomam pílula por conta própria, a partir de leituras ou indicações de amigas, aproveitando que não é preciso da receita para comprá-la. A orientação de um profissional é necessária?
Idealmente, essa orientação vem somar, porque vai selecionar a que a grupo aquela mulher pertence e qual é a pílula ideal para aquele perfil. Existem diferenças nas composições das pílulas e isso não é enxergado pelas leigas, elas entendem que uma pílula, qualquer uma, serve. Pegam o nome com a amiga, acham que é tudo igual e pronto. Às vezes, trocam de uma cartela para a outra com pílulas diferentes, não mantendo as mesmas substâncias ou composições, e elas fazem isso em sua prática diária.
Às vezes, a escolha é pelo preço...
Se ela vai olhar o preço comparando pílulas iguais, ok até. Pega aquela mesma composição, olha as opções e compra a mais barata no mês que ela está a fim. Mas ela precisa, no mínimo, comparar essas composições.
Algumas mulheres relatam que os parceiros deixam de se proteger porque sabem que elas tomam a pílula, e acaba ficando só para elas a responsabilidade da contracepção. Como contornar essa situação?
É difícil. O que eu costumo orientar a minhas pacientes é que elas precisam adotar um método contraceptivo pensando em gravidez, sim, mas somar a isso um preservativo pensando em DSTs. Essa é a primeira orientação, e aí eu já divido com o parceiro, porque ela toma a pílula e o parceiro também tem que bancar com o preservativo. Ainda não existe uma opção contraceptiva que a gente delegue ao homem, exceto o preservativo. O que mulher tem é pactuar com o parceiro uma forma de ele participar, de ajudar a lembrar, de estar envolvido naquele uso, dividindo a responsabilidade.
Há quem questiona os gastos financeiros na compra da pílula. Algumas mulheres convocam seus parceiros para dividir os custos, já que, na prática, ambos estão evitando um filho dos dois.
O homem tem que entrar nesse contexto, não só como parceiro sexual, mas como parceiro naquela escolha de não fazer filho. É responsabilidade dele, sim, participar disso.
A partir dos 35 anos, a combinação do cigarro com o anticoncepcional é fator de risco para doenças cardiovasculares. As mulheres dessa idade devem buscar outra forma de se proteger?
Toda escolha na vida tem risco. Mas, para aquelas mulheres que acham que existe a opção de correr zero risco, não dá para você recomendar usar a pílula. Para outras, que lidam melhor com isso, ainda dá para recomendar. A gente só vai selecionar qual o perfil de droga mais adequado. Hoje, há não só as pílulas de mais baixa dose, mas aquelas que tendem a oferecer uma composição hormonal bioidêntica. São hormônios que se aproximam o máximo dos hormônios produzidos pelo organismo. O importante é conversar tudo o que envolve algum risco nas escolhas, e, para mim, anticoncepcional envolve riscos desde o primeiro momento, quando a gente inclui na adolescente. Nas mulheres acima dos 35 e com outros fatores de risco, a gente tende a evitar o uso do estrogênio.
As pílulas bioidênticas são de fácil acesso?
São, você acha nas farmácias. Temos duas marcas com essa proposta, de dois laboratórios diferentes. Elas não têm o custo tão acessível, são um pouco mais caras, mas nem tanto. E hoje os laboratórios de mais força têm programas de relacionamento com os clientes, então as pessoas devem procurar saber o que o laboratório que estão escolhendo oferece a elas.
Sem fator de risco associado, o uso da pílula em mulheres dessa faixa etária protege contra a perda de cálcio ósseo e minimiza o risco de câncer de ovário em até 70% com dez anos de uso. O anticoncepcional, nesses casos, pode ser indicado, mesmo que não seja para a sua principal finalidade?
Não. O anticoncepcional tem como objetivo primário a contracepção, o planejamento familiar e entra como indicação quando você tem alguma patologia hormônio-dependente. Agora, porque pode prevenir câncer de ovário e câncer de endométrio, não. O anticoncepcional tem essa benesse da proteção do câncer de ovário e do câncer de endométrio, é um efeito colateral benéfico, mas não se justifica o uso para este fim porque existem malefícios associados. Aí você estaria somando risco para um câncer de mama ou para um tromboembolismo.
A pílula anticoncepcional é usada no tratamento da síndrome do ovário policístico. Há médicos que consideram, entretanto, precoce o uso para este fim em adolescentes, porque essas meninas ainda têm um eixo hormonal imaturo. Qual a sua avaliação?
Tem que individualizar essa paciente. Ela tem o eixo imaturo, ok, mas deixar evoluir uma patologia que é hormônio-dependente, que pode causar infertilidade e que vai prejudicar a vida dela, eu acho que não. Agora, a gente deve oferecer opções considerando que é uma menina, que acabou de menstruar e pode ter ainda o ciclo irregular – o que não necessariamente é ovário policístico, mas pela imaturidade do eixo. Claro, você vai dar um tempo para essa menina estabelecer o ritmo dela. A gente não costuma, aliás, fazer diagnóstico nessa fase. Mas se a paciente já tiver o diagnóstico, então é preciso discutir, sim, a oferta do tratamento.
A Organização Mundial da Saúde financiou recentemente o maior estudo já realizado para o anticoncepcional masculino. Comprovou-se a eficiência em 96% dos casos, mas as pesquisas foram interrompidas porque os efeitos colaterais foram considerados severos. Qual a sua opinião sobre isso?
Que a mulher não é o sexo frágil. A mulher que usa anticoncepcional não está isenta de ter náusea, vômito, mal-estar, ganho de peso, espinha, perda de libido, tudo isso ela está lidando para usar o anticoncepcional. Já os homens não lidam bem ou não querem lidar, é típico deles, ter mais dificuldade para lidar com a dor e com efeitos colaterais. E eu nem acho que tenha a ver com efeito colateral. Acho que o homem tem mais medo, de uma forma geral, e quando mexe com hormônio e virilidade, pior. Estava lendo recentemente um estudo sobre vasectomia, que é, teoricamente, um método muito mais simples e menos arriscado do que a laqueadura da mulher. Há um percentual enorme de homens que têm medo, porque acha que pode mexer com a potência sexual.
Sobre efeitos colaterais, mulheres usuárias de pílulas de progestágeno têm 34% de chance de tomar remédios para combater a depressão. Pesquisadores não levam isso em consideração ou o lobby da indústria farmacêutica é mais forte?
O lobby da indústria farmacêutica é forte sempre. Mas, mesmo existindo essa questão ligada ao progestágeno, não dá para excluí-lo das opções, porque há mulheres que não podem usar o estrogênio. A gente precisa ter a opção do progestágeno puro para a lactante, para a mulher que tem maior risco maior de trombose. Temos que lidar com esses efeitos colaterais assim como lidamos com os efeitos da pílula combinada [composta de estrógeno e progesterona]. Aliás, as limitações para progestínicos isolados são muito menores do ponto de vista de risco do que as pílulas combinadas. Então, a despeito de a progesterona isolada estar mais associada a esses distúrbios de humor, eu preciso ter como opção. Todas as opções têm prós e contras, então é difícil querer culpar uma classe de droga, dizer ah, isso vai causar depressão, vai causar trombose e querer excluir das opções. É individualizar e bancar algum risco.
Quase 60 anos depois de os EUA terem lançado o Enovid – medicamento para tratar distúrbios da menstruação que deu origem à pílula –, o controle da fertilidade masculina limita-se à camisinha e à vasectomia. Por outro lado, a Gates Foundation está desenvolvendo um contraceptivo no qual a mulher pode comandar a liberação de hormônios em seu organismo via controle remoto. O funcionamento masculino é, de fato, mais complexo?
Não, isso tem a ver com a disponibilidade do homem. Uma vez que a sociedade consagra alguns valores, é difícil mexer. Ficou consagrado durante 60 anos que a contracepção depende da mulher. Então, o homem fica numa posição confortável nesse contexto e não tem interesse de mudar. Há quem tente fazer os estudos, mas não conta com público para comprar. Acho que vai mais desse perfil social, não tem nada de mais complexo no organismo masculino, não tem uma causa científica para justificar isso. É difícil, quando você tem uma alternativa já em curso, investir em algo que depende de muito mais aceitação e que tem um terreno muito mais árido para enfrentar. O público feminino é muito mais aderente a tratamento, a remédio, a médico, a triagem, a checape, a tudo de uma forma geral dentro da medicina, não só ao uso do anticoncepcional.
Só se o homem engravidasse.
Só assim. O homem poderia estar muito mais comprometido, o filho é dele, o cuidado com a gravidez indesejada também tem que ser compactuada igual. A mulher veio com a capacidade de gestar, é uma diferença nossa, mas o homem é coparticipativo, ele é autor, tinha que chegar mais junto. Não ter um bebê é responsabilidade de duas pessoas.
A popularização da pílula permitiu seu uso ininterrupto para a supressão do período menstrual. Há quem defenda que diminui a exposição do estrogênio, e assim evitar endometriose, câncer de ovário e do endométrio. Do outro, há relatos de pacientes cada vez mais jovens, vítimas de trombose, em consultórios médicos. Como você avalia isso?
A trombose não tem a ver com esse uso sem parar da pílula, não. Trombose tem a ver com o uso de hormônio, com pausa ou sem pausa. A opção do uso sem parar tem a polêmica de permitir ou não permitir a mulher sangrar. A menstruação seria benéfica ou não ao organismo.
E a menstruação é realmente necessária?
Isso é muito controverso. No momento em que a gente entende que a menstruação é a resposta de um organismo feminino funcionante, mas uma resposta para um organismo livre de hormônios, é uma coisa. Mas no momento em que seu ciclo está todo dominado por hormônios, você não está mais menstruando porque seu corpo fez aquela ginástica toda para menstruar, mas sim pela privação do hormônio. E por isso que eu acho que essa discussão entre sangrar no uso da pílula ou não é inútil, porque aquele sangramento já é por privação hormonal. Será que ele está agregando muito benefício se o ciclo está todo bloqueado, inclusive sendo coordenado pela pílula? O que se tem hoje acerca do sangramento é que ele piora a questão da endometriose, e isso é científico: ciclos menstruais intensos e dolorosos têm relação com endometriose e endometriose tem relação gravíssima com infertilidade. Eu não sou a favor que toda mulher não menstrue, mas existe um perfil de mulheres que deve não menstruar para evitar uma mudança em seu organismo que pode resultar em infertilidade. Agora outra coisa que pode ser discutida é se a mulher que não tem problema ginecológico deve suspender o ciclo para não ter endometriose? Isso seria uma medida drástica que ainda não tem respaldo científico. Há pessoas emblemáticas aqui na Bahia que defendem isso, que menstruação é inútil, mas isso é uma corrente de pensamento. Há outros que pensam que não. Que a mulher que não tem patologia pode estar livre, vivenciando seu ciclo.
Em 2015, o Congresso brasileiro tentou proibir a venda da pílula do dia seguinte. Qual a sua avaliação sobre este medicamento?
É um medicamento seguro, mas que deixa de ser se você faz uso exagerado. Eu já atendi diversas mulheres que fazem uso da pílula do dia seguinte como um método contraceptivo. Usa o quê? Nada. Toda vez que tem uma relação sexual desprotegida, toma. Isso não é legal, porque é uma dosagem hormonal relevante que, se dada com muita frequência, pode trazer problemas sérios para a saúde.
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