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A diversidade como padrão para combater a gordofobia

Publicado domingo, 29 de novembro de 2020 às 09:40 h | Atualizado em 29/11/2020, 09:56 | Autor: Yumi Kuwano
Combate ao preconceito é uma constante luta | Felipe Iruatã | Ag. A TARDE
Combate ao preconceito é uma constante luta | Felipe Iruatã | Ag. A TARDE -

Os padrões de beleza e a sociedade andam juntos. Já que toda cultura tem o seu padrão de beleza, que varia ao longo da história, não temos apenas um, mas vários que são cultuados em cada lugar e época. Mas, historicamente, as mulheres sofrem mais com tais imposições.

Em 1990, com o movimento feminista um pouco mais consolidado, a escritora norte-americana Naomi Wolf afirmou que o mito da beleza consiste em atribuir valor às mulheres de acordo com a aparência e que isso serve a um projeto econômico, ou seja, o capitalismo lucra com a insatisfação com a aparência.

E tudo que escapa ao padrão de beleza de um determinado local é visto com preconceito. Daí surge a gordofobia, neologismo criado para se referir ao desprezo por pessoas gordas, distantes do ideal magro e longilíneo. Isso é mais grave do que imaginamos. Muitas vezes, a pessoa gorda sofre com a gordofobia, que é disfarçada em brincadeiras e nem percebe que está sofrendo uma discriminação. Até a família contribui com isso.

No dia 10 de janeiro de 2016 aconteceu em Salvador o primeiro ato do movimento Vai ter gorda. Não era a intenção da assistente administrativa e produtora de eventos Adriana Santos, mas a ideia de convocar mulheres gordas para ir à praia da Barra juntas deu o que falar entre os banhistas e também na mídia. Com a repercussão do evento, que reuniu cerca de 20 mulheres de biquíni, veio a ideia de criar um movimento para mostrar que deve ter gorda em qualquer lugar.

Adriana conta que nunca foi magra e que, mesmo sem saber, já era ativista, só não sabia que o nome dado era esse. Ela lidera o movimento nacional que ganhou até coordenadoria internacional, como em Portugal. O coletivo atua levando conhecimento e empoderamento a mulheres invisibilizadas por seus corpos, e conscientiza a sociedade sobre a falta de respeito e o mal que a gordofobia pode causar, podendo levar até ao suicídio. O Vai ter gorda também abraça outras lutas, porque, de acordo com Adriana, a maior luta é a favor da diversidade e do respeito.

“A questão é: quais corpos importam para a sociedade? Trazemos como movimento a valorização desses corpos, porque não podemos continuar sendo tratadas como se a gente não servisse. O nosso corpo não serve para a sociedade, porque a sociedade não é feita para gordos”, considera.

Seminários, palestras em escolas, rodas de conversa, eventos de moda como desfiles e concursos, ajudam a conquistar direitos e políticas públicas que fazem a luta avançar pouco a pouco.

Engana-se quem pensa que precisa usar eufemismos para se referir a uma pessoa gorda. Na opinião das ativistas, ser gorda não é um palavrão. “Você pode me chamar de gorda, mas precisa ter cuidado com a entonação e a forma que fala”, diz ela.

Balé

Adriana Santos conta que sempre foi ensinada que, sendo gorda, não poderia fazer um monte de coisas, como esportes e também não poderia ser mãe – ela é. O seu sonho era fazer aulas de balé quando criança, mas ouviu da mãe que não poderia porque era gorda: “É a negativa da nossa potencialidade simplesmente pelo nosso corpo e essa estigmatização está fortemente atrelada à saúde, na verdade, a um discurso da medicina que reforça isso”.

O grande problema desse assunto, assim, é a “patologização” do corpo gordo. Segundo Adriana, todos os seus exames são normais, ela não é uma pessoa sedentária e se cuida muito bem, mas é obesa grau 3, considerada obesidade mórbida. “Não se pode determinar a saúde de uma pessoa apenas pelo seu peso e altura, que é o que faz o IMC (Índice de Massa Corporal). Uma série de fatores precisam entrar no processo para avaliar se a pessoa está saudável ou não. Que doença é essa, afinal?”, questiona.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, para saber se uma pessoa está ou não obesa é preciso dividir o peso em kg pela altura ao quadrado, cálculo que resulta no IMC (Índice de Massa Corporal). Se o resultado for maior ou igual a 30 kg/m² a pessoa é classificada como obesa.

No Brasil, entre 2003 e 2019, a proporção de obesos na população com 20 anos ou mais passou de 12,2% para 26,8%. A taxa de obesidade feminina continua maior, passando de 14,5% para 30,2% e se manteve também acima da masculina, que subiu de 9,6% para 22,8%. Os dados são da Pesquisa Nacional de Saúde e foram divulgados no mês passado pelo IBGE.

Perda de direitos

Para a filósofa Maria Luiza Jimenez, autora do novo livro Lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos, a gordofobia se manifesta em todos os lugares e em todos os momentos.

Ela conceitua o termo como perda de direitos básicos: “Quando a pessoa perde espaço e oportunidades para pessoas magras, não tem acessibilidade, não consegue desempenhar atividades comuns por falta de estrutura, isso é a gordofobia. É um estigma cultural, estrutural e institucionalizado contra a pessoa gorda”.

Por ter origem estrutural, ela diz que todo mundo é gordofóbico, como acontece com o racismo e, por isso, como feminista decidiu se debruçar sobre o assunto, o que resultou na tese que virou o livro lançado agora em dezembro pela editora Philos para denunciar a violência da gordofobia desde a infância até a fase adulta.

O publicitário Dave Avigdor hoje discute a gordofobia em seu Instagram. “Desde pequeno a gente aprende que ser gordo é errado. Eu sempre achei que era desastrado. Quando descobri o ativismo gordo, tirei um peso enorme de mim”, conta. Para ele, sua vida teria sido muito diferente se tivesse o conhecimento que tem hoje.

Mas não é muito comum encontrar homens que falem abertamente sobre a gordofobia. O preconceito, às vezes, parece não os afetar, mas, na verdade, o machismo ainda é muito presente e explica esse distanciamento da questão.

Dave reconhece que a pressão estética recai muito mais sobre a mulher, mas reforça que a falta de acessibilidade e a perda de direitos não escolhem gênero: “Basta ser gordo para sofrer”. De acordo com Maria Luísa, essa é a diferença também entre o ativismo gordo e o movimento body positive, que tem a ver com aceitação e amor próprio, enquanto o ativismo luta por condições mínimas para o ser humano.

Além dos problemas vividos na infância, Dave já passou por situações desagradáveis no trabalho, por exemplo, de não poder desempenhar uma função porque não tinha um simples colete do seu tamanho.

A peça Dois pesos, duas medidas, do dramaturgo de João Guisande, em cartaz pela última vez em fevereiro deste ano, também trata de situações cotidianas como a vivida por Dave e propõe uma reflexão sobre o preconceito enfrentado diariamente por todos eles. O espetáculo foi quase um presente para o ator Daniel Calibam que contracenou com Fernanda Beltrão e diz que só a partir das aulas de teatro superou alguns traumas de infância e adolescência como gordo.

A ideia da peça surgiu naturalmente, assim como o texto criado a partir das experiências e de lembranças dos dois atores. “O processo foi bom, mas também me trouxe algumas dores. Ao revisitar essas dores, é como se eu conseguisse olhar de uma maneira diferente, transformando, ressignificando em arte”, conta.

O que mais marcou negativamente a infância de Daniel foi a falta de representatividade. Ele conta que quando tinha um personagem gordo era sempre o bobalhão, o engraçado: “Sempre limitando a pessoa gorda a um tipo e eu pensava, mas eu não sou assim”. Os colegas de Daniel riam, faziam piadas e a família achava que ele era triste porque se tornou muito introspectivo. Na adolescência, não gostava de sair: “Não namorava, achava que não era digno disso porque era diferente. Mesmo assim, eu não era infeliz, apenas não conseguia enxergar quem eu era de verdade”.

Mesmo com a consciência de que o seu corpo não representa inferioridade e sendo completamente feliz com ele, os momentos de baixa autoestima são inevitáveis: “Tenho que ter na cabeça que isso não é motivo de desespero, que eu não tenho que ter pena de mim e sim de quem me trata diferente. Temos que lutar para que a diversidade seja um padrão”.

Guinada

Outra prova de que estamos evoluindo, pelo menos um pouco, é a modelo Gabriella Blanco, que diz estar em um ótimo momento com o seu corpo. Ao sair de um relacionamento em que o parceiro falava muito do seu peso e a colocava para baixo, ela deu uma guinada na vida. Participou de um concurso de beleza e descobriu que tinha potencial para modelo.

A partir daí, investiu na carreira e os trabalhos só aumentam. Atualmente, faz cerca de cinco por semana. Mas Gabriella sabe que isso também aconteceu porque ela mudou a sua forma de se ver no espelho: “Quando a gente se acha bonita, não precisa emagrecer para agradar ninguém”.

Ela também acredita que as pessoas estão mais 'humanas' em relação ao preconceito. “Percebo que diminuiu bastante. Ainda acontece quando entro em uma loja, algumas pessoas me olham, mas não ligo”, diz. Mas o caminho foi longo até ela passar a pensar dessa forma. Na família, não tem ninguém magro, mesmo assim existe o preconceito entre eles, até hoje. O segredo, na verdade, é combater a gordofobia para que ninguém tenha que “não se importar” com o preconceito alheio.

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