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30/07/2023 às 1:10 - há XX semanas | Autor: Marcos Dias

MUITO

A entrega para adoção é irrevogável

Especialistas trataram do tema Racismo na Infância

Imagem ilustrativa da imagem A entrega para adoção é irrevogável
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Ontem, durante uma ação do Instituto Juristas Negras no primeiro dia do Festival Latinidades em Salvador, no Museu Eugênio Teixeira Leal (Pelourinho), especialistas trataram do tema Racismo na Infância – Um olhar sobre a maternidade negra. Entre as participantes do festival que celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, a assistente social do Tribunal de Justiça da Bahia, Denise Ferreira, que também atua no Conselho Nacional de Justiça, falou sobre crianças institucionalizadas e adoção. Especialista no Sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente com foco em adoção e relações étnico-raciais, com mais de 20 anos de experiência, ela destaca nesta entrevista que a mãe negra é culpabilizada pela sua vulnerabilidade e que durante todo esse tempo só recorda de um caso em que o pai esteve com a mãe na entrega da criança: “Sempre é a mãe, sozinha, que tem que dar conta daquela realidade”. Além do Juristas Negras, Denise (@soudeniseferreira) participa da Liga do Dendê, coletivo que trabalha com literatura afrocentrada e afrorreferenciada com várias ações voltadas para as crianças. Mãe de Akin Rudá, de 10 anos, ela também criou, durante a pandemia, o Clube de Leitura Amigos do Akin: “São estratégias que a gente vai criando para que nossas crianças pretas, tanto as institucionalizadas como as não institucionalizadas, tenham acesso à diversidade das nossas histórias”.

Como o racismo se expressa em relação às crianças institucionalizadas e as adoções?

Acompanhando dados do Sistema Nacional de Adoção (SNA), percebemos que em todas as regiões federativas do Brasil, as crianças institucionalizadas são, hegemonicamente, crianças pretas e pardas. Mesmo na região do Sul, onde temos uma composição da população com número majoritário de pessoas brancas. Mas quando a gente parte para ver qual a criança que está em situação de vulnerabilidade encontramos as crianças pretas e pardas. As principais expressões a gente vê nos números. Uma dessas expressões é a gente ter disponível para adoção um número muito maior de crianças pretas e pardas do que crianças de outras etnias. Isso comprova que temos uma questão social correlacionada com essas crianças, e essas crianças são frutos de mães negras que têm uma maternidade altamente vulnerabilizada por causa de diversos fatores, econômicos, sociais, ausência de políticas públicas ou políticas públicas frágeis e elas acabam disponibilizando essa criança para adoção ou perdendo a capacidade de cuidar, e aí entra o Estado. Então, essa mãe negra é, muitas vezes, culpabilizada pela sua vulnerabilidade. Quando ela chega para fazer uma entrega ainda há um imaginário social de que ela está fazendo algo que é perverso para aquela criança. E a gente, que trabalha cotidianamente com essas situações, sabe que é uma ação de proteção e, muitas vezes, a única saída que ela tem é abrir mão da maternidade para que a criança tenha algum tipo de proteção – física, alimentar, familiar, de todas as ausências.

Quando a senhora fala em abrir mão da maternidade, esse afastamento é permanente ou há outras possibilidades de se manter algum vínculo?

Quando a mãe chega à situação de fazer a entrega, a chamada entrega voluntária, que eu prefiro usar o termo entrega responsável, é porque, na verdade, ela não tem a escolha de não entregar. Ela entrega porque está totalmente vulnerável àquela situação e isso depois de todo um processo técnico, sabendo que depois não vai ter mais contato com essa criança. Ela tem um prazo de 10 dias para se manifestar depois da entrega. Se não se manifesta nesse prazo, a criança vai ser entregue para adoção e todos os vínculos tanto dela quanto do restante da família serão cortados. Então, ela não vai saber onde essa criança está. A legislação brasileira acaba cortando todos os vínculos e possibilidades de contato dessa mãe com o filho, mas quando essa criança é retirada por outros motivos, por exemplo, vulnerabilidade, maus-tratos ou até mesmo negligência, que é muito comum, ela ainda tem contato com essa criança porque tenta-se fazer uma reinserção familiar. Mas essa inserção está muito atrelada a políticas públicas, porque muitas vezes é uma mãe que não tem uma casa própria para morar, que vive de aluguel, de benefícios sociais. Às vezes, tem mais de um filho com mais de um companheiro, em que ela tem que exercer seu papel de mãe sozinha para dar conta daquela realidade, morar em locais de alta vulnerabilidade, violências, e tudo isso interfere na capacidade dessa mulher de dar conta. Então, o envolvimento com o alcoolismo tem a ver com todas essas mazelas, manter uma lucidez quando você está só, sem nenhum tipo de suporte, é algo muito difícil. A entrega para adoção, realmente, é irregovável. Ela abre mão totalmente de ter contato com aquela criança.

Às vezes sabemos histórias de reencontros...

Quando a pessoa tiver 18 anos, já um adulto, e quiser resgatar o processo para identificar quem é essa mãe, vai poder fazer isso. E é algo que traz muito sofrimento para essa mãe preta, porque quando ela entrega, ela entrega na esperança que aquele filho vai ter uma vida melhor do que o que ela pode ofertar. Mas ela convive com essa sombra para saber se o seu filho está bem, se, de fato, uma família acolheu bem, se ela fez a coisa certa naquele momento. Porque em outros países existe a adoção com contato, em que a mãe, embora entregue para adoção, ainda tem a possibilidade, mesmo com a guarda estando com outra família, de ter algum contato com essa criança em algum momento mais para frente. Às vezes, o contato é com algum familiar, com um irmão. Isso faz com que a criança saiba um pouco da sua história. No Brasil, não. Quando ela entrega, aquela história acaba, de certa forma, morrendo. Porque aquela criança não vai saber o que ocorreu naquele período histórico em que aquela mãe fez a entrega, e isso causa muito sofrimento para a criança quando ela vira um adulto porque todo mundo quer saber sua origem, sua história. Querer saber sua história não quer dizer que você vai querer se desvincular da família que lhe acolheu, que virou seus pais legais, seus pais socioafetivos, e muitas vezes o adulto e o adolescente querem saber de sua história. No Brasil fica difícil saber dessa história. Essa mulher preta, em geral, só vai ter acesso se um dia essa criança procurar. Geralmente, quem faz essa entrega, fica com esse sentimento de querer saber o que aconteceu com a criança. Nos 20 e poucos anos que trabalho com isso, sei que é uma entrega sofrida, não é decisão fácil de uma mulher tomar. A gente tem um grande mito social de que essa mulher que faz essa entrega é desprovida de sentimento mas, em grande parte, essa entrega é uma forma de proteção. Isso é importante falar porque quando uma pessoa, uma criança, adolescente e depois adulto, tem ciência da sua história com mais profundidade, é importante que passe sua fase de desenvolvimento com esse sentimento também de proteção. Frequentemente, a forma que é contada para essa criança a coloca no espaço da rejeição. Na legislação, a gente tem que nenhuma criança pode ser retirada de sua família por questões financeiras ou econômicas, mas na prática sabemos que se as famílias ficam vulnerabilizadas, o que temos na nossa sociedade são muitas mães solo, com dificuldades de manter cuidados mínimos com essa criança.

Quando fala em infância institucionalizada, se refere apenas aos casos de adoção?

As crianças que passam por adoção e as crianças também que não passam, porque quando se tenta uma reinserção familiar e essa reinserção não tem êxito, você não consegue colocar essa criança com os pais biológicos, tios ou irmãos mais velhos ou um familiar que possa, a partir daí, cuidar dessa criança, então ela passa a estar disponível para adoção logo depois de um processo chamado de destituição do poder familiar. Mas aí tem as crianças também que ficam um determinado período nas instituições por essas vulnerabilidades de suas famílias, mas depois retornam, e são cercadas de várias dificuldades. Uma das grandes dificuldades que percebemos é essa construção negativa da autoimagem, a construção da identidade étnico-racial dessa criança, porque muitas vezes é uma família ausente nesse sentido, e também como ela se desenvolve na instituição. Ficamos muito preocupados se o processo está no prazo, se a criança está comendo, se está se vestindo, mas a criança é muito mais do que os aspectos materiais. Existem aspectos subjetivos que estão muito ligados, por exemplo, ao papel familiar. Quem é que conduz essa construção positiva da identidade negra? É a família. Secundariamente, a escola, mas tudo começa na família. É importante também que os órgãos públicos, a justiça, fiquem atentos também que se faz necessário esse trabalho dentro das instituições de acolhimento para que essa criança seja vista de forma integral, além das questões materiais, as que compõem o desenvolvimento biopsicossocial dentro desse sistema de garantia de direitos. As instituições de acolhimento são formadas por uma equipe técnica e é importante que estejam qualificadas para trabalhar a diversidade étnica dentro do acolhimento. Podemos dar instrumentos para essa criança ter uma construção de identidade positiva, por exemplo, os livros afrocentrados e afrorreferenciados. É uma boa estratégia para iniciar um diálogo com essas crianças.

A senhora também integra a Liga do Dendê, como funciona?

É um coletivo de autores e autoras negras de Salvador que trabalha nessa perspectiva de produzir livros com o objetivo de potencializar as diversidades, a identidade étnico-racial, trazendo a criança para um outro espaço, de pertencimento, empoderamento, de realeza, de decolonizar saberes e trazer nossas histórias ancestrais como forma de fortalecimento de suas identidades. Porque hoje as crianças acabam tendo acesso à história da população negra a partir do processo de escravidão. E sabemos que a população negra no mundo não surge com esse fragmento que foi o processo de colonização e de escravização.

Essa é a história que foi escrita por quem colonizou e escravizou.

Exatamente. Hoje vivemos um momento histórico de decolonização desse saber e isso vem cercado de redescobertas, de ver que não temos uma história única. O perigo da história única é o perigo do colonizador, que dita as regras, diz o que é belo, diz o que é ciência, o que a gente deve aprender e não deve aprender. Estamos no momento das descobertas das nossas histórias que ficaram apagadas, neutralizadas ao longo desse período, então, temos muita coisa para trazer para essas crianças. Para que se saibam potentes e que um dia percebam que todas essas dificuldades que socialmente a gente passa tem a ver com um processo histórico e não necessariamente com a situação singular da existência dela, mas que é algo maior, algo estrutural, e que elas podem ter outras vidas e outras referências. Então, trabalhar com essa literatura e poder trazer profissionais que possam contribuir com a autoimagem, com intelectuais negros, professores negros, juízes negros, faz que ela se constitua pertencendo a essa história que está sendo contada.

A senhora também escreve para crianças?

A maioria dos meus livros são técnicos. Mas estou com dois livros infantojuvenis, um está sendo escrito e o outro estou esperando o lançamento, mas não posso socializar ainda. Também tenho um clube de leitura, o Amigos do Akin. Akin Rudá é meu filho, de 10 anos. É um espaço que surgiu no período da pandemia, quando meu filho estava no processo de alfabetização e ele, junto com outros colegas, passaram a fazer algumas leituras à distância, já que não podiam estar próximos, aí surgiu a ideia do clube de leitura, um clube de leitura afrorreferenciado. São estratégias que a gente vai criando para que nossas crianças pretas, tanto as institucionalizadas como as não institucionalizadas, tenham acesso à diversidade das nossas histórias, que a gente passe esse momento de ruptura e, de fato, tenhamos histórias decoloniais que tragam potência para essas crianças. O Clube de Leitura Amigos do Akin (@akinruda_oficial) tem esse objetivo. Até porque ele é um menino preto que está sempre em espaços que, infelizmente, a gente tem poucas crianças pretas que conseguem acessar. Aí ele consegue, com as leituras que faz, socializar com outras crianças que não estão nesse universo. Até porque a questão racial não é uma questão só de pessoas pretas, mas é uma questão de pessoas. É importante que todas as crianças tenham acesso e saibam que o mundo é organizado para todos, para todas as diversidades, e que todos são igualmente importantes na sua existência.

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