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26/05/2024 às 0:00 - há XX semanas | Autor: Priscila Miraz*

MUITO

A estranheza dos corpos

Confira a coluna Olhares

Imagem ilustrativa da imagem A estranheza dos corpos
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O corpo é o ponto zero do mundo, afirmou Michel Foucault na conferência radiofônica de 1966, O corpo utópico. Não tem lugar, mas é dele que partem todos os lugares. Jamais está fadado a ser um aqui, cápsula única recortada pelo volume que ocupa, nem uma única trajetória linear no tempo. O corpo utópico, ao superar uma visão mecânica de corpo e de espaço, não é idealização imaginária. É simultaneamente incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado, visível e invisível. Leve, transparente e imponderável.

Utopia é subvertida e perde seu sentido de algo que anularia a materialidade do corpo pela negação de seus limites a partir de caraterísticas do fantástico, porque o corpo é algo que não se deixa reduzir com facilidade, e ele mesmo, em sua fisicalidade, possui lugares sem lugar, lugares mais profundos, profundos como a pele, seu órgão mais extenso e maleável, que intercambia o mundo pelo tato.

Esse corpo que recusa o aprisionamento em formas e funções estabelecidas pela representação, sendo, ao contrário, abertura ao campo de imanência como possibilidade de sua invenção em múltiplas formas, é central na exposição individual da artista visual Lanussi Pasquali, o que é issoaquilo, aberta à visitação em A Galeria, no Ativa Atelier Livre, no último dia 11 de maio, podendo ser visitada até dia 15 de junho. Lanussi apresenta trabalhos em tecido de linho bordados com linha preta e objetos maleáveis construídos em pelúcia preta e peças de cerâmica, pequenos pés contrastando em sua definição com os corpos amorfos aos quais estão ligados.

Os materiais têxteis fazem parte da pesquisa e da poética da artista desde o início de sua trajetória, sendo elaborados pela deliberada manualidade que os conecta historicamente ao trabalho cotidiano e doméstico das mulheres, e ao uso dos têxteis na arte contemporânea desde a crise dos meios tradicionais e da crítica feminista da arte, em esculturas moles e instalativas, como em Sem Título I e II (1999), em que a pelúcia é misturada ao moleton peluciado e a fibra sintética, para a criação de peças arredondadas e cheias, sendo que em uma, na superfície cinza, surgem pontos que se assemelham a crateras côncavas, e em outra, de superfície preta, desses pontos saem pelos.

São objetos que nos aproximam da presença de um meteorito ou de uma grande pedra, contrapondo em nós, a partir do visual, as sensações táteis de dureza e maciez no jogo entre forma e matéria. Tecidos e fibras sintéticas também são os materiais de Uma tenda para Louise (2004/2005), uma grande escultura instalativa com dimensões variáveis criando um abrigo em forma circular espiral, em que o lado de dentro está cheio de formas pendentes em suas paredes, como grandes gotas ou seios. O trabalho é uma referência à artista Louise Bourgeois, presença importante no trabalho de Lanussi.

Diário particular

O bordado como gesto, processo, corpo e tempo surge também em trabalhos anteriores, como em 365 dias… (2014), série de pequenos bordados feitos com linha dourada sobre papel de bambu, colocados lado a lado em ordem cronológica, como forma de resistir à aceleração desmedida e tantas vezes vazia do tempo, uma “homenagem à lentidão, às coisas que precisam de um espaço e de um tempo reais para acontecerem”, como disse a artista, ou ainda “uma contagem, um diário particular”.

Se em 365 dias… os bordados não seguem um desenho pré-definido, mas o acaso que surge no embate do corpo da artista com seus materiais no gesto de bordar, nos trabalhos apresentados em o que é issoaquilo, são, em sua maioria, garatujas guardadas, feitas em momentos distintos em pedaços de papel, que agora estabelecem outro sentido com o espaço, numa escala de desdobramentos e inversões do bi para o tridimensional que o bordado inscreve: desenho tridimensionalizado e escultura bidimensional, como aponta João Gravador, curador da exposição.

São formas que se oferecem ao outro, mas não de maneira ostensiva, porque mantêm certa crueza que não pode ser desvelada, nomeada. E a falta de nomeação muitas vezes nos desampara, porque impossibilita encerrar, delimitar e, num gesto, tomar posse. Recusando qualquer identificação definidora, o trabalho de Lanussi mantém a firmeza da liberdade das imagens transitivas, dos corpos não hierarquizados. Os corpos moles, cheios de calombos, alongados, arredondados, estabelecem por meio da instalação, sua provisória existência na força do plano vertical, sua elasticidade estrutural formada de uma densidade que percebemos movediça.

Olhando as peças, sentimos a gravidade no peso do tecido repuxado, dobrado, costurado, o que a artista brasileira Leda Catunda, conhecida por seus trabalhos com materiais têxteis, chama de poética da maciez. A escultura Sem título, em grande formato instalada sozinha, concentra a tensão da gravidade presente nas esculturas: suspensa por um fio invisível, a massa pesada e amorfa da pelúcia preta absorve o espaço aberto que as paredes brancas ao redor tendem a criar, como se tudo convergisse para ela e nela se acabasse, num equilíbrio instável e precário de pés que apenas tocam o chão.

Em Leda Catunda: Entrevista Comentada, Lilian Tone aponta para a importância da confluência entre o processo de subversão dos pressupostos da solidez e da permanência de obras escultóricas desde os objets trouvés, passando pela década de 1960, quando são usados materiais maleáveis como borrachas, lonas, feltros e tecidos variados, com a abordagem feminista da arte contemporânea em sua efervescência nos anos de 1970, criando o que Mirian Shapiro e Melissa Meyer vão chamar de femmage: atividade de colagem, assemblage, découpage e fotomontagem praticadas por mulheres, usando técnicas femininas tradicionais como costurar, furar, enganchar, cortar, aplicar, sendo que nesse processo “cada pedaço valioso de percal, musselina ou algodão estampado, cada conta, carta ou foto, era uma lembrança de seu lugar na vida de uma mulher, como uma anotação de diário”.

Tempo fraturado

Assim, existe nessas produções têxteis um tempo fraturado, criado pela necessidade de inventar a própria vida, de descondicionar os comportamentos cotidianos numa relação de interação com o público. Como disse a própria artista em A arte contemporânea e o pensamento da diferença: “Acredito que a arte é uma potência que rompe com o mundo das representações, dos clichês, fazendo-nos adentrar num universo enigmático e instigante que, tanto pode ter um aspecto lúdico e sensitivo, como despertar reflexões sobre o modo de vida na atualidade”.

Lanussi elabora ativações que estabelecem relações com essa discussão, colocando o corpo do observador em estado de expectativa acionado pela natureza de memória sensorial, tátil, que a pelúcia traz, uma memória de convivência familiar, doméstica, de uma realidade ordinária que se torna extraordinária, próxima, mas também estranha. Esse ponto que as obras acessam no observador, algo fugidio entre o ordinário e o extraordinário, é potente por ter a experiência como lugar de intersecção entre sensação, imagem e memória. Experiência tomada em seu duplo sentido apontado por George Didi-Huberman, sendo o que “nomeia tanto uma prova por que passou quanto a experimentação realizada com a finalidade de produzir ou fomentar, algo como uma laceração”.

Essa é a segunda exposição individual da artista, que diz que ela não tem um tema específico, mas que de certa forma é a “retomada deste corpo que faz arte, deste corpo que é o próprio objeto de arte e destas reflexões que me acompanham”. Essa retomada se dá depois de eventos pessoais intensos, de incertezas e de perda profunda, uma relação de muita intensidade com o corpo em mutação, pela morte, pela doença, pela experiência de um não saber que é o que nos constitui em nossa mais funda humanidade.

É daí que a exposição de Lanussi nos olha e nos convida para a experiência viva do acontecimento: da pele mais profunda das coisas. A artista tira do lugar nosso corpo acomodado, apresenta outras formas de vida, porque somente a arte tem a potência para concentrar na expressão de um objeto tudo o que nos comove diante da estranheza.

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

*Priscila Miraz é doutora em História Cultural e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia ([email protected])

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