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PERFIL

A experiência baiana de um antropólogo e cineasta holandês

Antropólogo holandês Matteijs van der Port, documenta a Bahia há mais de 20 anos

Por Gilson Jorge

25/08/2024 - 9:05 h
Matteijs van der Port
Matteijs van der Port -

Quatro meses antes de que eclodisse a Guerra nos Bálcãs, em 1991, o antropólogo e cineasta neerlandês [gentílico dos Países Baixos, nome oficial do país conhecido como Holanda], Mattijs van der Port desembarcou na Sérvia, então parte da Iugoslávia, para estudar a vida dos ciganos naquele país.

Veio a guerra e ele ainda permaneceria por dez meses tocando o seu trabalho, mesmo com o desenrolar do sangrento conflito, até que concluiu o trabalho de campo e deixou a região.

"Foi uma experiência horrorosa, mas importante, que me definiu como pesquisador", conta Mattijs, que observou de perto a desintegração de um país que teve relevância geopolitíca na maior parte do Século 20.

De volta à Universidade de Amsterdã, o antropólogo se deu conta de que havia um descompasso entre o seu trabalho de campo e a expectativa de seus pares acadêmicos. "Eu passei 14 meses naquela bagunça. E eles (a universidade) só queriam que eu arrumasse a bagunça", explica Mattijs, criticando o espírito europeu de impor soluções.

"O discurso científico é esse. Onde tem caos, vamos criar uma ordem. Meu desentendimento com o mundo acadêmico é pela insistência em criar clareza", aponta o antropólogo.

Para ele, não há nada claro em um mundo que está constantemente em contradição. Uma certeza que se aprofundou em sua cabeça desde 2001, quando veio à Bahia pela primeira vez estudar o Candomblé. O convite foi feito por uma amiga da universidade, já que o antropólogo havia morado em Lisboa e falava português.

Foi amor à primeira vista, como acontece às vezes, e desde então Mattijs vem praticamente todos os anos passar um tempo. A relação com a Bahia rendeu até o momento cinco documentários, com temas que incluem espiritualidade, liberdade, relações afetivas, o modo de viver e as frutas brasileiras. Inicialmente, todos os filmes só podiam ser assistidos pelo público mediante assinatura na plataforma Vimeo. No catálogo está, por exemplo, The body won't close, sobre as práticas de proteção espiritual, que em 2022 venceu o prêmio de melhor filme experimental do Festival de Cinema Independente de Madri.

Mas desde este mês de agosto, o filme Knots and holes, sobre as redes de pesca, pode ser visto na página do Journal of Anthropological Films, https://boap.uib.no. O filme está disponível em inglês, sem legendas.

A narrativa do antropólogo entremeia a informação acadêmica necessária à compreensão dos objetos de estudo com a inserção afetiva pessoal de Mattijs. No mais intimista dos filmes, Where can I get lost? (algo como Onde eu posso me perder?), o neerlandês explora a existência de um mundo maior do que o que ele conhecia. Homossexual, Mattijs lembra de ter vivido até a adolescência sem que houvesse espaço para a sua existência. E mesmo na vida adulta a abordagem sexual a outro homem não soava uma possibilidade frequente.

Mattijs toma emprestado o título a partir da obra da escritora estadunidense Rebecca Solnit, A field guide to getting lost, lançado em 2005, quatro anos depois que o antropólogo conheceu a Bahia. A autora considera que a descoberta desse mundo ampliado é um pesadelo para uns e uma promessa para outros.

Às vezes, pesadelo e promessa não são autoexcludentes. Em 2003, um amigo baiano de Mattijs foi morto a facadas, no que se suspeita ter sido um crime de homofobia. Uma perda pessoal que mostrou ao antropólogo a outra face da moeda na experiência de não ser heterossexual no país. No ano passado, 230 pessoas LGBTQIAPN+ foram assassinadas no Brasil.

Em outro filme, The possibility of spirits (A possibilidade dos espíritos), Mattijs retrata a crença de uma comunidade rural perto de Amélia Rodrigues de que há um reservatório de água sagrado, chamado Milagre de São Roque. Segundo a tradição local, um menino certa vez decidiu subir na pedra onde está o nascedouro do curso de água para desvendar sua origem e ao voltar estava emudecido.

Independentemente do que acredita ou não, Mattijs se coloca no filme como alguém que é notado pela comunidade, que também lhe faz perguntas. "Para mim, o antropólogo não pode, nem deve, tentar definir o outro, como fizeram durante tanto tempo dentro do projeto colonial; o que podemos, sim, é refletir sobre os encontros que temos com os outros. O que é que se passa nesses encontros? E o que podemos aprender destes?", questiona. Os filmes não estão disponíveis ao público em geral para preservar a intimidade dos entrevistados.

Para os acadêmicos, e os europeus em particular, os mistérios precisam ser desvendados. "O que aprendi, e que serve de consolo, é que existe um mistério além do seu conhecimento. Você não precisa se esforçar para saber tudo, porque nunca vai saber tudo", declara o antropólogo, que recorre à expressão em inglês "scratch the surface". Literalmente, arranhar a superfície, no contexto que nunca se vai capturar uma quantidade significativa de dados para compreender um fenômeno em particular. "Essa foi a primeira lição que eu aprendi no Candomblé", conta.

Falsa questão

Amigo de Mattijs, o doutorando em antropologia Maycon Lopes Villani elogia os filmes do intelectual neerlandês. "O trabalho de Matteijs dá mostra de que a possível tensão entre ciência e arte é uma falsa questão. Essas elaborações conceituais e ao mesmo tempo afetivas são, por excelência, intercambiáveis em seu trabalho", declara Maycon.

Apresentado a Matteijs por sua orientadora, a professora doutora Elena Calvo González, Maycon, que mora em Feira de Santana, de vez em quando recebe sua visita e já o levou para comer bode assado.

O intelectual feirense, que aparece no filme Where can I get lost, afirma que ele e o amigo compartilham uma forma irônica de interpretar o mundo, o que inclui uma dose de autoironia. "Isso fez com que ocorresse um encontro pleno, no sentido de comunicação, de identificação. Nós nos reconhecemos desde sempre e isso é muito claro", aponta Maycon.

Nem sempre as coisas do mundo são claras. No tempo em que pesquisou músicos ciganos na Sérvia, Mattijs acompanhou a contradição de pessoas que são sistematicamente perseguidas, mas que podem virar incrivelmente próximas. E viu que durante os processos de limpeza étnica na guerra, eslavos podiam ser obrigados a deixar seus vilarejos sob bombardeio descalços, como se fossem ciganos. E que frente à possibilidade de morrer em combate, esses eslavos que discriminam poderiam pagar caro a um cigano que lhes emocionasse com uma música de seu povo.

"São lembranças que não podem existir nas narrativas oficiais, mas são colocadas na noite. A experiência de perder tudo na guerra ou a atitude de gastar porque não faz sentido investir no futuro é parte dessa cultura", explica o antropólogo. Relações que Mattijs relata em seu livro Gipsies, wars and other instances of wild, que pode ser adquirido na Amazon por R$ 521.

Por outro lado, a vivência de Mattijs mostra que quando não se está em guerra, e o seu único objetivo é apenas sobreviver a outro dia, a vida pode oferecer um leque de oportunidades.

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