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A fábrica ao lado

Publicado segunda-feira, 27 de julho de 2015 às 08:50 h | Atualizado em 27/07/2015, 09:17 | Autor: Eron Rezende
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Vestido com uma capa de chuva amarela, Miguel, 64, surge entre os escombros. É o ponto incandescente na cena cinza. "Vê aquela torre?", ele pergunta. "Tem ventilação e vista boa. Durmo lá". O morador de rua, de rosto radioso, destilando confiança em si mesmo, descortina seu crachá: "Sou o guardião aqui". O espaço guardado é um monstro de ferro, aço e concreto, posicionado tal qual um farol que se abre para a praia de Paripe, no subúrbio de Salvador; um derradeiro exemplar do que foi o primeiro grande sítio industrial do país.

Miguel chegou à velha fábrica de cimento no início dos 1990, quando trabalhadores, motores e barulhos já haviam cessado. Décadas antes, entre o final do século 19 e meados do século 20, 127 fábricas à semelhança daquela se instalaram na Península de Itapagipe e no subúrbio ferroviário, regiões então idílicas da capital. Com a mesma rapidez moderna e movidas por ofertas fiscais mais atraentes, elas partiram para outras regiões do Brasil, legando um horizonte pontilhado por construções em decadência nesta área de Salvador.

Os vestígios do que outrora foi o oásis da atividade industrial nacional descansam no que hoje são bairros com comércios populares, puxadinhos e ruas apertadas; servem de campo para o futebol, para os furtos, para o grafite e para o abrigo dos sem-teto. Os esqueletos das antigas fábricas não têm o charme das ruínas gregas. O concreto não descasca, escurece. O vidro temperado não suja, enlameia. Mas há algo que alude à ruína romântica: a retomada impetuosa da natureza, da vegetação que vai envolvendo frestas e juntas de dilatação e ajardinando chaminés, tanques, engrenagens.

"Em cada uma dessas fábricas deve ter um grupo morando. Aqui, sou só", diz Miguel, ostentoso de não sofrer concorrência de outros moradores pelo espaço. Com a pose de bandeirante que lhe convém, ele aponta para o litoral que alinha os bairros do subúrbio e da Cidade Baixa de Salvador: "Tem restos de fábricas de tecido, de fumo, cera, sapato, algodão, cal, fósforo. Fábrica de papelão, prego, móvel, vidro, borracha, bombom. Mal, a gente não passa".

Marco Zero

Às margens da Avenida Suburbana, no bairro de Plataforma, encontra-se aquele que talvez seja o mais conhecido entre os restos industriais, marco zero da região, o conjunto arquitetônico da fábrica de tecidos São Braz - ao redor dela, surgiram ruas, vilas operárias e armazéns. Com seus tijolos alaranjados aparentes, essa é a ruína que lembra o momento em que o Brasil almejou com força a modernidade industrial  - se tudo é feito pela indústria, tudo deveria ser feito para ela.

"Nossa produção enchia os vagões dos trens da Leste (Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro), e as barcaças que saíam da Península Itapagipana, desembocavam na Baía de Todos-os-Santos e iam em direção a todo o país", diz o senhor de fala rápida, Eduardo Barajas, 87, sentado na laje de seu sobrado, com vista privilegiada para a antiga São Braz. "Eu operava as caldeiras a vapor; ficava apaixonado pelos relógios gigantes dos corredores e pela alvura dos linhos. Eram os anos 1940 e eu era jovem. Você pode dar um desconto ao encanto".

Eduardo pertence à segunda geração dos trabalhadores fabris de Plataforma, geralmente filhos daqueles que inauguraram, no final do século 19, o trabalho em São Braz. Para a primeira geração, havia um ícone chamado Luiz Tarquínio (1844-1901), o barão de Mauá baiano e proprietário da fábrica, dado a relações trabalhistas amigáveis e, por isso, visionárias. Para a segunda geração e todas as descendentes, no entanto, estabeleceu-se uma relação divergente com a tradicional família Martins Catharino, que, após a morte de Tarquínio, adquiriu não apenas a fábrica, mas também os terrenos arrendados pelo industrial aos seus funcionários.

"Muitos  continuam  inquilinos dos Martins Catharino. E pagam por isso", diz Sandra Costa, 30, presidente da Associação de Moradores de Plataforma (Ampla). Com o aumento constante no preço dos aluguéis, a associação entrou, há 15 anos, com ação judicial coletiva reivindicando o direito à propriedade (usucapião).

"Alguns moradores, desinformados, acabaram assinando novos contratos de aluguel. Como não podem pagar, estão sendo despejados. Ano após ano, famílias precisam deixar Plataforma", conta Sandra, que, hoje, corre o bairro atualizando os moradores sobre as novidades do processo, ainda sem previsão de um veredito. Procurados, os membros da família negaram-se a entrar em detalhes sobre o assunto, adotando o mesmo silêncio que agora preenche os destroços de São Braz.

Camadas

A industrialização em Salvador acrescentou complexidade a sua história urbana. Sítio plano e de águas calmas, a parte da cidade escolhida pelos homens industriosos saltou de vila de pescadores a lugar de veraneio, de centro fabril a centro varejista, sem que tais camadas se apagassem por completo. As diversas fatias do passado exibem-se, agora, sobrepostas. "É um palimpsesto, aquilo que se raspa para se escrever de novo", diz a arquiteta Soraia Carvalho, 61, passando o indicador pelas plantas das fábricas extintas - de tecidos (Paraguassú), na Ribeira, de pregos (Westphalen Bach), no Bonfim, de cervejas (A Nortista), em Roma.

Autora de uma tese de doutorado sobre o parque arquitetônico industrial da Península de Itapagipe, Soraia enxerga, em seu material de pesquisa, "marcas de um país em transição". "Outras corridas fabris aconteceram antes e em diferentes partes do país. Mas nenhuma com esta proporção. O número de fábricas e o curto espaço de tempo com que elas se instalaram em Salvador é um episódio único na nossa busca pela modernidade".

No artigo Itapagipe como sítio industrial da Salvador moderna, a professora do curso de arquitetura e urbanismo da Ufba Célia Cardoso dá a medida do impacto dessa busca: "O relógio da Estação Ferroviária da Calçada, o ruído do correr sobre os trilhos, os apitos do trem e as sirenes das fábricas entrecortavam o tempo livre, anulando qualquer possibilidade de que fossem esquecidos a nova ordem e o novo ritmo estabelecidos".

Reforma

Embora arquitetos e urbanistas reivindiquem a conservação da arquitetura industrial, o caminho adotado segue em outra direção. Há dois anos, a prefeitura demoliu a estrutura da fábrica de chocolates Barreto de Araújo, na Ribeira, que deu lugar a uma praça. No final deste ano, segundo a Superintendência de Obras Públicas, está previsto o início da construção de um complexo de lazer - piscina natural, quadras poliesportivas, parque infantil - que ocupará parte da estrutura da São Braz.

O arquiteto Nivaldo Andrade, 38, um dos autores deste último projeto, vê, no entanto, um avanço nas relações nem sempre harmônicas entre a construção de espaços de lazer e a existência de marcos históricos. "O plano é interferir minimamente na estrutura arquitetônica da fábrica. Há um senso ético e histórico que pede isso", diz, referindo-se ao tombamento de São Braz pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, em 2002.

"Não há como defender a manutenção das fábricas como elas estão hoje. Você olha e só consegue ver um terreno abandonado e inseguro", diz Clara Gusmão, 55, que atua como líder comunitária em Itapagipe. "Mas sabemos que estas são construções que têm um valor histórico. Nossa luta é para melhorar a qualidade dos espaços sem perder a arquitetura".

Desde abril deste ano, Clara, mulher de voz forte e gestos maquinais, vem se reunindo com arquitetos e urbanistas voluntários para desenvolver propostas de melhoria das antigas indústrias e galpões. O maior empecilho, ela diz, é a propriedade particular dos terrenos, quase sempre figurando como coadjuvantes no espólio de famílias baianas abastadas ou como depósitos de empresas que integram o Centro Industrial de Aratu (CIA), braço mais recente da industrialização na Bahia.

Monumento

Não é raro encontrar, nesta parte de Salvador, quem dê indicações geográficas utilizando as antigas fábricas como sinalização. "Siga reto e você verá a ponte da Crush", disse Manuel Barreto, 68, o Barretão, após ser indagado sobre a água de coco mais próxima. A extinta fábrica de refrigerantes Crush, um das últimas a se instalar na Ribeira, no final dos anos 1950, serve, ali, como monumento.

Barretão trabalhou no CIA. Seu pai, na indústria de cigarros Souza Cruz. E seu avô operou máquinas na Companhia de Ferro Esmaltado, que aparece nos livros do IPTU instalada no Largo do Papagaio, número 14, Ribeira. "Cada família tem a sua história", diz Barretão, exibindo uma foto datada de 1893, em que seu avô posa em frente à fábrica. A cena em preto e branco é um flagrante marcado em tom épico. "A história da minha família é a história do meu avô: um pescador que virou operário".

Histórias de família neste antigo sítio industrial do Brasil só não surgem com mais força do que as de homens e mulheres que vagam em meio às ruínas. Como a  da Gorda, que, se diz, matou um homem e decidiu nunca mais falar - e segue abrigando-se nas velhas fábricas. Zé, 65, sem-teto tal qual Miguel, assevera que a história é verdadeira, mas que nem sempre é fácil encontrá-la.

Há dez anos, Zé (a identificação concedida por ele parou aí) decidiu dar um passeio a pé de Salvador a Camaçari, um trajeto de 50 quilômetros. Não tinha o que fazer na época. Se já é difícil achar trabalho, para quem acaba de passar dez anos na cadeia ainda mais. Calculou que, a passos rápidos, a peregrinação não duraria muito. Mas, já na saída, choveu e ele decidiu se refugiar no que sobrou de um galpão industrial margeado pela baía. Lá ainda está.

É Zé quem mostra o que ele faz quando anoitece e o frio se intensifica na rua: põe o colchonete, deita, empurra um portão de ferro para obter uma fresta. "Vê este portão?", diz. "Antes não se movia. Agora posso ver o mar". Ali, do chão do galpão decrépito, assiste ao movimento dos grandes navios de carga.

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