MUITO
A imensa liberdade de J. Cunha
Uanga, que quer dizer ‘feitiço’ na lingua bantu, dá nome à retrospectiva que está em cartaz no MAM
Por Vinícius Marques
Berço de grandes nomes da música, literatura e artes visuais, artistas baianos conquistam a admiração de muita gente mundo afora com suas criações inspiradas na alma e na história do povo local. Um desses nomes é J. Cunha, multiartista que neste ano completa 75 anos de vida e 60 anos de uma carreira repleta de cores e ritmos.
Nascido em 1948 na Ponta de Humaitá, localizada na Península de Itapagipe, em Salvador, José Antônio Cunha, como foi batizado, tem em sua origem uma mistura de diferentes linhagens e territorialidades afetivas que influenciaram sua obra de maneira marcante.
Descendente de bantos africanos e de indígenas kiriris, filho de mãe sertaneja de Canudos e de pai descendente de ciganos da Armênia, ele traz consigo e em sua arte a riqueza e a diversidade cultural que fazem parte da sua história pessoal.
Menino negro e pobre, o pequeno José não fazia ideia de que um dia seria um operário da arte, no entanto, sempre gostou de apreciar as cores e as formas que via na cidade e nas revistas. Lembra, inclusive, que o primeiro contato com uma obra de arte foi folheando edições de jornais e revistas como O Cruzeiro e Manchete.
“As pessoas jogavam fora as revistas, eu pegava e ficava vendo. Aí apareciam pinturas de Picasso, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Djanira. Eu via e ficava com aquilo para mim. Eu tinha um fascínio tão grande, parecia que eu penetrava naquela zorra e pertencia àquela coisa”, conta o artista.
Para além das páginas das revistas, a primeira manifestação artística que vem à cabeça de Cunha são as barracas de festas de largo, no Humaitá. Ele via cores bem específicas, vibrantes, com pinturas em todos os cantos das barracas, e ficava encantado com tudo aquilo. Isso e também os costumes da população, o consumo de comidas e bebidas, as músicas. As barracas, inclusive, foram as primeiras formas de manifestações de arte popular que ainda hoje permeiam o trabalho do artista.
"Isso faz parte de todo o meu orgânico de sinais, a minha semiótica está com isso. Destruíram todas as barracas, mas por quê?”, questiona Cunha. “Era uma interferência pop na cidade, era feito na hora. Isso refletia o próprio desejo das pessoas, é arte”, lamenta.
Por volta dos 11 anos, Cunha começou a pintar os barcos que ficavam estacionados à beira-mar. Fazia com muito cuidado os escritos que ficam nas laterais. E por tanta delicadeza no trabalho, ouvia que seria engenheiro. Durante a adolescência, passou a frequentar o Senai pela manhã, onde aproveitava para almoçar. Lá, estudou Tornearia Mecânica.
Durante a noite, finalizava o ginásio. “Consegui com muito esforço”, lembra. Faculdade, no entanto, como Cunha lembra, não estava nem no radar: “Não tive a menor chance. Nem orientação, nem chance, me joguei na bandidagem da arte”.
No Senai, Cunha brincava de ser artista. Durante as aulas, estava desenhando no caderno. Logo chamou a atenção dos professores e passou a criar cartazes para as atividades da instituição. Uma das professoras, que Cunha não lembra o nome, viu o caderno do artista e disse que ele deveria estar na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Cunha nem sabia o que era essa tal escola. “Mas logo deu aquela coisa na cabeça, estar numa escola de artes…”, diz.
Ao chegar na EBA, em 1966, Cunha ficou em choque: “Lembro do cheiro daquela tinta a óleo, das obras imensas e eu nem sabia daquelas possibilidades. Eu só via na Manchete”. O caderno de obras que o fez entrar na escola ainda está guardado com o artista.
As habilidades de Cunha o fizeram ser aprovado no curso livre, onde permaneceu até 1969. Lá, se aperfeiçoou na pintura. “Os professores diziam que eu já sabia fazer as pinturas, só precisava desenvolver intelectualmente as coisas. Entendi bem e fui ler. A oportunidade que eu nunca tive”, conta. Passou a maior parte do tempo na biblioteca, lendo tudo sobre arte.
“O que tinha em inglês, francês, eu não sabia, mas as figuras me diziam, me traduziam o mundo. Fiz isso por mais de três anos. Me formei em História da Arte, na verdade, porque fiquei ali reconhecendo”, brinca Cunha. “Fiquei craque em reconhecer qualquer artista, até ter o privilégio de ver as obras na cara”, acrescenta.
A oportunidade de ver cara a cara as obras que tanto apreciava nas revistas e livros aconteceu algumas vezes na vida de J. Cunha. Viajou pela Ufba pela primeira vez para visitar a Bienal de São Paulo e, depois, outras vezes a partir de 1968 quando passou a integrar o Viva Bahia, grupo criado pela etnomusicóloga Emilia Biancardi, onde Cunha atuou como cenógrafo, figurinista e bailarino, e pôde viajar pelo Brasil e exterior.
Museus
Foi ainda jovem que J. Cunha descobriu que o seu talento servia para outras coisas, como as funções exercidas no Viva Bahia. Isso o fez conhecer museus do mundo inteiro, que era seu grande desejo. “Parte do meu dinheiro era para ir para os museus. Qualquer cidade que ia, eu ia atrás do museu. Era até criticado por isso”, lembra.
Paralelamente ao trabalho no grupo de dança, ainda achava tempo para produzir seus quadros. Em 1970, expôs pela primeira vez no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-Ba), quando recebeu o Prêmio Artista da Nova Geração. “Mário Cravo me apresentou no museu, ele me viu na EBA, viu meu caderno e me levou. Foi um privilégio”. Em 1976, retornou ao museu com sua primeira exposição solo, Sertão e Luz, na qual apresenta múltiplas artes: pintura, desenho, dança, poesia, literatura e performance.
O trabalho múltiplo de J. Cunha sempre foi marcado por muitos simbolismos e elementos orgânicos. Cunha brinca com as cores, com as imagens e cria a partir do que acha bonito, como gravetos, caixotes e lençóis. Tudo isso dá uma característica única à sua obra.
Além das barracas de festas de largo, outra grande inspiração para o baiano foi o artista pernambucano Mestre Vitalino, que criava suas obras a partir do barro. Isso mostrou para Cunha que a arte pode ter muitas possibilidades.
O artista baiano passou, então, a se inspirar em outras ferramentas e formas de arte. Grande estudioso do movimento Cinema Novo, já homenageou Glauber Rocha e figuras tropicalistas. Essas referências e uma obra em constante construção foram fazendo de J. Cunha um artista consolidado.
Já ganhador de prêmios, com um grande currículo e passaporte repleto de carimbos, Cunha aceitou o desafio de criar a identidade visual do bloco afro Ilê Aiyê, em 1979. O artista define o trabalho no Ilê como algo “pioneiro”. Ele já tinha feito muito trabalho de cenografia, já havia trabalhado com muitos grupos de dança e tinha muito conhecimento sobre África. Para ele, foi o trabalho perfeito. “Quando entrei para fazer o Ilê eu já estava preparado como designer. Nossas conversas eram mais no plano da beleza”, afirma.
Foram 25 anos de parceria, e durante esse tempo Cunha viu o Ilê se tornar internacional. Esse fato também o fez enxergar sua arte com outros olhos. Aas mais de três mil pessoas que desfilavam usando suas estampas eram como um grande outdoor para o mundo.
“Se você imaginar que a cada ano, durante 25 anos, três mil pessoas vestiram isso nas ruas, para as artes plásticas, por exemplo, isso é de um poder de alcance sem achar outro lugar que tenha isso. Quem é o artista que teve isso a cada ano, três mil pessoas? Tem os cartazes, têm as fotografias, têm as filmagens, então, a coisa é muito maior do que três mil”, diz ele.
Todo esse trabalho o fez alcançar patamares ainda maiores, afirmando que somente depois desse trabalho, aos 50 anos de idade, passou a ser considerado por muitos como um “artista coerente”. Ele recorda que quando era jovem, as dificuldades na arte eram as mesmas de qualquer jovem negro em outras áreas, e que os acompanha a vida inteira: o racismo.
“Racismo em todos os sentidos, porque não nos davam oportunidades maiores. Eu, para ter a oportunidade de ser admitido como um artista coerente, já foi com 50 anos para cima. Para baixo, não”, conta. E todo o trabalho do artista vem de sua relação com África e sua ascendência indígena. Tudo isso está presente nas histórias, símbolos e cores que aplica nas obras, até mesmo em suas roupas.
“Eu já fui maltratado anteriormente por causa das roupas que eu usava e as pessoas não sabiam nem se eu era artista. Deveriam ter desconfiado, porque tinha um cabelo desse tamanho e estava com roupas coloridas. Deve ser coisa de artista, né?”, lembra.
Sobre as muitas cores, ele explica que é tudo muito intuitivo. “Eu nunca tive dificuldade em escolher. Isso eu faço com tamanho desprendimento que daqui a pouco eu sei que cor vou juntar com esse azul”, diz apontando para uma obra ainda em construção. “Mas é uma máquina produtiva já organizada, começa assim e eu não sei exatamente como vai acabar, mas que vai acabar com harmonia, vai”, acrescenta.
O artista, pesquisador e professor de Estética da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Danillo Barata, que trabalhou na organização do livro-catálogo ‘O Universo de J Cunha’, lembra que chegou a catalogar mais de três mil obras no acervo do artista e destaca a sagacidade de Cunha ao misturar o flerte com o tropicalismo, a experiência sertaneja, afro-brasileira e mostrar uma arte genuinamente brasileira.
“Ele é muito disciplinado e isso me chama muito atenção, de como ele pensa tudo isso. Ao mesmo tempo, tem uma elaboração teórica sobre o trabalho de uma forma muito precisa. Tem uma coisa de etnógrafo no trabalho, de ir para as comunidades que interessam, de investigar, de levantar elementos”, destaca Barata.
Para o pesquisador, a obra de Cunha traz uma dimensão do que seria uma resistência, primeiro porque ele passou mais de 50 anos produzindo arte e vivendo dela, e, para ele, isso é muito interessante: “Embora hoje a gente tenha aí as políticas culturais e tudo mais, Cunha vem de uma época em que não existia nada disso. Um artista trabalhando, fazendo o trabalho dele com ou sem políticas culturais, produzindo e produzindo muito”.
Estudos e produções
De fato, hoje Cunha continua produzindo sem previsão de largar os pincéis – ou outras ferramentas. No seu ateliê, adquirido em 2004, com o dinheiro que conseguiu trabalhando com dança, continua seus estudos e produções, Chega ao local todo dia às 6h e finaliza trabalhos depois que o sol se põe.
“Tenho trabalhado essas coisas que você está vendo aí, com uma liberdade muito grande. O Inhotim adquiriu uma obra minha, mas não fiquei milionário por isso”, brinca. Hoje, ele acredita que sua obra tem mais reconhecimento, principalmente porque acredita que houve uma renovação nos curadores dos museus. Para J. Cunha, hoje existem mais curadores negros e indígenas, que têm um olhar mais sensível para suas obras.
"Os curadores mudaram, são os curadores pretos que estão entrando. Estão na Bienal, Pinacoteca, Itaú Cultural. São curadores indígenas também. Eles vão chamar quem para exposições? Nós mesmos. Eu, pelo menos, ainda estou vivo. Posso fazer muita coisa”.
Uanga
Atualmente, uma exposição celebrando a obra de J. Cunha está em exibição no MAM-Ba, com o título de Uanga, que significa feitiço, em bantu. O curador, Daniel Rangel, conta que essa não é uma exposição em homenagem, já que o artista estará presente durante toda a duração da mostra. Para ele, esse é um trabalho em conjunto.
Essa é a primeira exposição solo de um artista desde a nova gestão do museu, que só havia realizados mostras coletivas com um tema. As exposições anteriores, inclusive, contavam com obras de J. Cunha. “Isso mostra a relevância dele para a gente hoje e o que a gente acha com relação a J. Cunha. Hoje ele é um representante único em termos da produção dele, em termos da história da produção dele e o que representa a produção dele para hoje. Ele consegue ser muito grande”, afirma Rangel.
O curador costuma chamar Cunha de “artista feiticeiro”, porque, para ele, as cores e os símbolos do artista “são mágicos”. Rangel garante que nada está ali por acaso. "As obras são cheias de significados, é uma explosão semântica. Tem muito conteúdo, são 60 anos, então, provavelmente não tem quem não se identifique com aquilo que está ali, porque em algum momento da vida aquilo fez parte da nossa vida”, explica.
Atualmente, no ateliê do artista, acompanhando de gatos e macaquinhos que entram sem pedir licença e lá se instalam, J. Cunha produz mais quadros utilizando suas variadas cores e compondo tudo com muitas linhas, seu novo modo de compor e mais uma vez referenciando tradições africanas e indígenas.
“Essas grandes civilizações, tanto indígena quanto africana, eu absorvi a questão da linha, que é infinita à composição”, revela. “Pego a linha, acompanho a forma. Para mim, é um exercício semiótico. Comecei a desenvolver isso há algum tempo para poder chamar de linguagem. Eu uso pincel como um lápis, não é pincelada. É a linha pela linha”.
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