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A importância da promoção e restauração da arte pública em Salvador

Publicado domingo, 28 de novembro de 2021 às 06:00 h | Autor: Gilson Jorge
Incêndio em 2019 destruiu obra de Mário Cravo Júnior na praça Cairu
Incêndio em 2019 destruiu obra de Mário Cravo Júnior na praça Cairu -

Ao lançar o livro A Revolução Urbana, em 1970, o filósofo e sociólogo marxista francês Henri Lefebvre argumentou sobre as vantagens e desvantagens dos monumentos. Um ponto negativo desse tipo de obra, segundo ele, seria o seu caráter repressivo, como sede do Estado, da Igreja ou da Universidade.

Curiosamente, naquele mesmo ano, a capital baiana, sob a repressão da ditadura militar, inaugurava o Monumento à Cidade do Salvador, escultura do modernista Mário Cravo Júnior, que rompia com o padrão de exaltação ao poder, apostando em formas que, segundo algumas análises, remetem às velas dos saveiros que aportavam na Praça Cairu, onde se cravou a obra encomendada pelo então prefeito Antonio Carlos Magalhães.

Destruído por um incêndio em 2019, com a cidade sendo governada por Antonio Carlos Magalhães Neto, o monumento pode ser restaurado no ano que vem com um orçamento máximo de R$ 1,2 milhão, conforme edital que deve ser assinado agora em dezembro pela prefeitura.

A arrastada negociação com a família do escultor, num momento em que a cidade lança ali perto o Roteiro Urbano de Arte (RUA), com obras de diferentes artistas, ajuda a lançar uma questão. Qual o valor da arte pública?

A resposta não é simples. Para começar, é difícil discordar da decisão de trazer de volta o monumento que, no mesmo enquadramento do Elevador Lacerda, tornou-se cartão postal de uma cidade eminentemente cultural e turística. Depois, o autor da obra, Mario Cravo, é um dos pioneiros do modernismo na Bahia, junto com Carlos Bastos e Genaro de Carvalho. Mas como se chegou a essa cifra?

Em termos de comparação, ao longo de 2015 a Fundação Gregório de Mattos investiu R$ 888.878,03 em restauração e confecção de monumentos.

Isso incluiu a reforma do Memorial Clériston Andrade, na Avenida Garibaldi (R$ 348.335 mil); do Relógio de São Pedro (R$ 216.196,22), da Estátua de Dom Pedro II, em Nazaré (R$ 122.260,41) e a construção de uma estátua de Dorival Caymmi em Itapuã (R$ 115 mil).

Fora a criação, a cargo de um artista, boa parte do custo dessas intervenções é absorvida pelo trabalho de órgãos públicos municipais, como a Sucop (Superintendência de Obras Púbicas do Salvador) e a Desal (Companhia de Desenvolvimento Urbano de Salvador).

No caso do Monumento à Cidade do Salvador, por exemplo, a Sucop fica encarregada de construir a estrutura, enquanto a Desal vai executar a obra em si.

Diálogo

Há dois meses, a Desal está dialogando com o engenheiro mecânico Otávio Cravo, filho de Mário Cravo Júnior, que em 2001 recuperou parcialmente o monumento depois da queda de um lóbulo superior. Cravo tem a expectativa de ser contratado como consultor. “A obra é complexa, tem que ter uma expertise para fazer. A Desal tem um plano de me contratar como consultoria, mas não concretizou o plano”, diz.

O Presidente da Desal, Virgílio Teixeira Daltro, confirma que tem conversado com Cravo, mas desconversa sobre contratação: “No momento oportuno, a gente toma uma decisão sobre isso. É importante ele estar perto da gente, quanto à contratação será definida a posteriori. Ele é uma pessoa muito útil, vamos observar a legalidade dessa participação dele”.

Quanto ao valor no edital, Daltro afirma que esse valor é o máximo e que pode diminuir na licitação. “Quando se faz licitação, o cara entra com fator redutor e pode baixar o preço, é uma concorrência. A prefeitura paga bem e o cara sabe que pode reduzir o preço e assegurar o trabalho”.

Coordenadora do Grupo Urbanidades da Escola de Belas Artes da Ufba, a professora e artista visual Ines Linke considera que, historicamente, há pouco debate com a sociedade e pouca transparência na contratação de arte pública, além de enxergar uma tendência de concentração dos trabalhos em poucos nomes como Carybé, Mário Cravo e Bel Borba.

“Muitos desses mecanismos não são transparentes. Quem encomendou? Por que são convidados determinados artistas? Qual o uso dessa verba pública em relação a diferentes espaços? Tem toda uma política que, às vezes, não é muito clara”, considera a professora, que reclama da falta de informação financeira sobre o acervo de monumentos.

“Fui uma vez à FGM buscar inventário dos monumentos, o valor econômico das obras, a noção do acervo, e tem quase nada de registro sobre o que foi pago”, afirma. A FGM mantém atualmente uma planilha de gastos com monumentos referente apenas à gestão de Fernando Guerreiro, iniciada em 2013.

Outra iniciativa da FGM, o Roteiro Urbano de Arte, levou às ruas locais, em janeiro deste ano, esculturas feitas por sete artistas renomados da atualidade em homenagem a nomes consagrados da arte baiana. Zuarte Jr. celebrou Reinaldo Eckenberger, pintor, escultor e gravador argentino que se mudou para a Bahia em 1965, cinco anos antes da construção do Monumento à Cidade do Salvador.

“O trabalho de Eckenberger tinha uma relação com o erótico, com o escracho das ruas de Salvador. Foi um prazer muito grande ter uma obra que converse com a cidade, que provoque olhares e sensações e acrescente a dimensão da transcendência, que é o papel da arte. A questão da vida, de driblar o que perece”, explica.

A atuação da Fundação Gregório de Mattos, aliás, é elogiada por Juarez Paraíso, um dos pioneiros em arte pública na Bahia, que considera a atuação da pasta uma exceção na área desde a década de 1970.

“O único governo que fez promoção de arte em espaços públicos foi o de Roberto Santos (1975-1979)”, declara o artista, ressaltando a importância de projetos como o Mural, que espalhou painéis de artistas como Anderson Santos e Ray Vianna por fachadas de prédios do Comércio e, este ano, o RUA, que levou artistas renomados de Salvador a construir obras em homenagem a mestres do passado nas ruas do mesmo bairro.

“Eu fiquei com um pouquinho de inveja porque não participei, só por isso”, brinca Juarez, que manifesta o desejo de que esses projetos contemplem um número maior de artistas. “O perigo é só existirem os artistas mais badalados, mas há um perigo maior ainda quando há apadrinhamento”.

Ele diz que as grandes obras de arte monumental na Bahia foram feitas na base do apadrinhamento e dá como exemplo os Orixás do Dique do Tororó que, em suas palavras, foram dadas de “mão beijada” a um só artista.

Tatti Moreno recebeu a incumbência de criar as estátuas dos 12 orixás que compõem a paisagem nas proximidades da Arena Fonte Nova. “O mesmo artista para fazer 12 orixás é um absurdo, ninguém tem competência para isso, absorver o axé de 12 orixás”.

Memória

Sobre a reforma do monumento de Mário Cravo, Juarez afirma tratar-se de um patrimônio nacional, que deve ser consagrado em livros e pela restauração de sua memória. Mas faz uma crítica. Embora ressalte que o monumento é um cartão-postal, uma obra consagrada, ele cita como obras ainda mais importantes de Cravo as esculturas de Oxalá e Iemanjá, que figuravam no antigo prédio central dos Correios, na Pituba, e que foram abandonados e vandalizados com o fechamento da unidade. “Uma coisa criminosa, tentaram restaurar e fizeram uma piada”, pontua.

Com a experiência de quem tem um painel de 180 metros se esfacelando no prédio da Secretaria de Agricultura, no Centro Administrativo, além de obras em homenagem a Irmã Dulce e ao Senhor do Bonfim armazenadas em um galpão nos Dendezeiros, Juarez reflete: “Se eu fosse filho de Mário Cravo estaria dando graças a Deus que o governo municipal está empenhado em restaurar, jamais pensaria em dinheiro, em lucrar com isso”.

Em nota, o presidente da FGM, Fernando Guerreiro, declara: “Quando um monumento ultrapassa a função artística e se transforma num ícone da cidade ele passa a fazer parte inseparável da paisagem urbana. O monumento em questão, com suas formas intrigantes e provocativas, criou um elo de ligação simbólico com cada habitante dessa cidade e objeto de admiração e curiosidade de todos os que nos visitam. Por isso, a recuperação se torna imprescindível”.

Diferenças

Mas o que é arte pública, afinal? A professora Ines Linke estabelece uma diferença entre arte no espaço público, como as galerias a céu aberto, incluindo o novo RUA, e arte pública. Essa segunda está ligada a questões do poder público com as instituições. “Muitas vezes, pensamos mais numa coisa de imagem da cidade e não nos valores políticos, econômicos, artísticos e sociais associados à ideia que a gente chama de arte pública”.

A arte que, originalmente, foi fincada por colonizadores e logo pelo Império, por exemplo, traziam consigo uma mensagem de poder, de celebração dos conquistadores, dos vencedores, do patriarcado, do capitalismo.

“Para mim, Salvador é uma cidade que tem uma grande presença de arte, esculturas e monumentos no espaço urbano que por muito tempo estiveram esquecidos, fora de pauta”.

Ines considera que não dá para pensar as histórias das esculturas e monumentos em Salvador sem pensar nessas estruturas de poder. “A Salvador colonial com essa grandiosidade dos monumentos, que deixa implícito uma violência, uma brutalidade nas relações sociais”, diz ela, salientando que esses monumentos só começaram a ganhar atenção de forma mais ampla depois que protestos anticolonialistas e antirracistas começaram a varrer países que sofreram dominação europeia, como Estados Unidos e África do Sul, e mesmo a colonizadora Inglaterra. Um potente detonador de estátuas mundo afora foi o movimento Black Lives Matters (Vidas Negras Importam).

Criadora do Monumento a Zumbi dos Palmares, de 2008, Márcia Magno celebra a importância de se homenagear quem esteve do outro lado do front, defendendo o povo negro e as populações indígenas.

“Zumbi é importantíssimo, representa o negro que defendeu os negros da escravidão, o ícone do que pode ser considerado um cidadão do bem, forte, defendendo a raça humana. Uma homenagem que já devia ter sido feita há muito mais tempo”, declara.

Assim como os grafites em muros da periferia, os novos monumentos da cidade começam a contar uma outra história.

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