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"A intolerância é a pauta da extrema-direita", diz Paulo Fonseca

Confira entrevista com o professor do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Ufba

Publicado domingo, 17 de março de 2024 às 05:05 h | Autor: Pedro Hijo
Professor integrou a equipe que, após a eleição de 2022, detectou o esvaziamento das redes bolsonaristas
Professor integrou a equipe que, após a eleição de 2022, detectou o esvaziamento das redes bolsonaristas -

Professor do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Ufba e do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação da Ufba, Paulo Fonseca é especialista em mapeamento das redes sociais da extrema-direita. Ele integrou a equipe que, após a eleição de 2022, detectou o esvaziamento das redes bolsonaristas. Mas os extremistas digitais estão de volta e a todo vapor, no Brasil e no mundo. Desde a última segunda-feira, o professor está em Portugal para uma licença de três meses, por conta de um edital da Capes. No mês em que o país lembra os 60 anos do golpe militar, A TARDE ouve o professor sobre os riscos que as modernas democracias correm. Não necessariamente com tanques e soldados, mas com os exércitos digitais da extrema-direita que ameaçam interferir na vontade popular e preocupam a justiça eleitoral no Brasil.

P - O TSE inaugurou na última segunda-feira o Centro de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia. As redes de desinformação são globais. O estado tem condições efetivas de interferir nessa matéria?

R- Os desafios de qualquer iniciativa por parte do poder público para fazer o monitoramento são muito grandes, devido a algumas questões. Primeiro, a própria natureza do trabalho, que é muito difícil de ser feito, no sentido de estar acompanhando com efetividade tudo aquilo que está sendo compartilhado em termos de discurso de ódio e difamação. É muito difícil monitorar o que realmente está ocorrendo, especialmente dentro dos aplicativos de mensageria privada, como Whatsapp e Telegram. Mas de toda forma, é importante que essas iniciativas ocorram, especialmente em períodos eleitorais, quando os efeitos das campanhas de difamação que sejam bem-sucedidos podem ser drásticos para os resultados das eleições e consequentemente para a saúde da democracia. Sabemos que as redes são globais e então existe um outro desafio, no sentido das medidas para a coerção dessas práticas. A gente sabe que as contas de usuários que se valem de estratégias ilícitas acabam conseguindo ultrapassar as barreiras levantadas em território nacional, com.a utilização de tecnologias como o VPN ou mesmo usuários que estão situados fora da jurisdição nacional. Mas de toda forma é importante. A gente viu que nas eleições de 2022 o TSE promoveu uma iniciativa similar. Me parece que ocorre agora o desenvolvimento do que foi feito e que em minha opinião foi bem-sucedido no sentido de conseguir identificar com relativa celeridade questões sensíveis que poderiam impactar no resultado das eleições. O estado tem, sim, condições de interferir nessa matéria. A questão é o quão efetivas podem ser essas medidas.

P- Estamos comemorando 20 anos de duas redes sociais que tiveram muito êxito no Brasil, o extinto Orkut e o Facebook. A última eleição sem redes sociais no País foi em 2002, quando Lula conquistou seu primeiro mandato. O que mudou na forma de fazer política em duas décadas?

R- Nós temos uma clara transformação nas últimas duas décadas em relação à forma de se fazer política e principalmente na forma como a sociedade vem compreendendo o que é política. Não podemos colocar como causa única dessa transformação as redes sociais, as plataformas digitais de comunicação, mas sem dúvida podemos afirmar que as novas comunicações mediadas por essas plataformas digitais de fato vêm transformando não só a forma como as campanhas eleitorais são feitas, mas também a forma como os cidadãos concebem o que é política e como agir politicamente. A gente sabe por exemplo que no âmbito das plataformas das redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter), os algoritmos têm sido projetados para manter a atenção dos usuários nos dispositivos, vamos dizer assim, a qualquer custo. Isso reforça aquele efeito que chamamos de 'bolhificação'. Isto é, as pessoas ficam cada vez mais voltadas para os conteúdos com os quais elas já têm algum tipo de familiaridade ou concordam ideológica e moralmente. As pessoas têm cada vez menos acesso a conteúdos contraditórios e opiniões divergentes das que elas já têm. Esse mecanismo faz com que se reforce a polarização. Uma polarização extremada que alguns cientistas políticos vêm chamando de calcificação, porque reflete uma nova condição de exercício da vontade política, que praticamente coloca a preferência política como parte da identidade das pessoas.

P- O senhor fala que algumas pautas da extrema-direita no Brasil são importadas...

R- Nos nossos monitoramentos nos grupos de extrema-direita no Telegram, observamos desde o início uma conexão muito direta das pautas que eram propulsionadas no Brasil com as pautas da extrema-direita global. Há uma importação no Brasil de uma agenda da extrema-direita global. Essa agenda se reflete nas políticas de repressão, de segurança pública, mas no Brasil o que talvez seja mais claro é o movimento antivacina, que antes da ascensão da extrema-direita no Brasil era insignificante.

P- Nayib Kelele, presidente de El Salvador, é um fenômeno da extrema direita, com seu modelo de violência de estado e prisões em massa. Ele esteve recentemente com Trump, Milei e Eduardo Bolsonaro, se colocou à disposição para acabar com as gangues no Haiti e seu modelo pode ser adotado para combater a violência do narcotráfico em Rosário na Argentina. Como sua imagem é trabalhada nas redes de extrema direita?

R- Essa pauta de extrema violência do estado, com uma agenda de segurança pública pautada na coerção extrema do estado, é comum a toda a extrema-direita global. Obviamente que em cada contexto ela vai ter suas adaptações. No contexto dos Estados Unidos, essa tendência a uma intolerância em relação à criminalidade acaba se associando muito a uma intolerância aos imigrantes. E é a mesma coisa que se vê ocorrendo aqui na Europa. E quando a gente vê a agenda movida pelo próprio Governo Bolsonaro é basicamente o mesmo discurso, de colocar uma política de violência do estado, de promover grupos de extermínio, como se dizia. E portanto não me surpreende que na Argentina se tenha esse anúncio porque essa é a pauta da extrema-direita. É uma pauta de colocar a intolerância como ponto central da agenda política. Intolerância contra possíveis criminosos, ou seja, intolerância contra imigrantes, contra determinadas minorias que não são bem quistas por esses grupos que se mobilizam pela extrema-direita. São pautas que se valem de uma carga afetiva, emocional baseada no medo que as pessoas têm da violência, das transformações causadas pela imigração.

P - Políticos de extrema-direita têm discurso xenófobo e contra as minorias. O que não impediu que o Chega em Portugal e os Republicanos nos Estados Unidos elegessem respectivamente um imigrante brasileiro e um americano homossexual filho de brasileiros. E apoiadores de Trump forjaram uma foto em que pessoas negras apareciam ao seu lado em campanha. Como funciona essa estratégia?

R - Isso não é novo ou inusual. Nos Estados Unidos já tinha o caso do George Santos, filho de imigrantes brasileiros, homossexual assumido, que reverberava um discurso trumpista destinado aos imigrantes e em grande medida de desprezo à diversidade sexual. Aqui, a mesma coisa. A gente tem um brasileiro que se elege com uma plataforma anti-imigrante. O que acontece? Essas figuras, esses aliados inusuais, eles são muito instrumentais para o exercício da política por parte dessas coalizões de extrema-direita porque eles vêm dar mais legitimidade a suas agendas. Na medida em que a gente tem alguém que supostamente seria atacado por essas coalizões se juntar a elas e reforçar esse discurso. Isso mostra aos seus aliados, seus seguidores que eles não são necessariamente odiosos contra todas as pessoas dessas minorias, mas que eles são contra uma determinada agenda política de imigração ilegal, mas que eles somente são contra aqueles que realmente são criminosos, como no caso de El Salvador. É muito instrumental, é uma estratégia muito eficaz. No Brasil, existe uma parlamentar indígena (Sílvia Waiãpi, PL/AP) que é muito vocal no apoio às pautas bolsonaristas, que vem justamente deslegitimar os indígenas que se opõem às políticas genocidas contra essa população. Na medida em que você tem um representante dessas minorias, desses grupos sociais que de fato são alvo dessas políticas pregadas pela agenda da extrema-direita isso vem deslegitimar a oposição a essas políticas. Não me surpreende que um brasileiro tenha sido eleito aqui em Portugal pelo Chega, assim como não me surpreendeu que políticos negros e homossexuais tenham se elegido pela extrema-direita no Brasil e em outros lugares.

P- A tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 não prosperou por falta de apoio dos Estados Unidos, que inclusive anunciaram que não endossariam uma ruptura. Trump é favorito para as eleições deste ano. Sua volta à Casa Branca poderia facilitar uma nova tentativa de golpe em eleições próximas?

R- Em relação à possível volta de Trump e a sua influência no desfecho de uma eventual nova tentativa de golpe no Brasil, fica difícil especular se a presença de Trump na Casa Branca facilitaria essa tentativa em eleições próximas no País. Isso evidentemente vai depender muito da conjuntura nacional, como o País vai estar em relação a esse golpismo, que infelizmente se alastrou em grande parte da sociedade brasileira e das próprias Forças Armadas. O que a gente pode colocar é que não será nenhuma surpresa se os Estados Unidos, numa eventual vitória de Trump, modificarem drasticamente sua agenda de relações diplomáticas com o Brasil. Trump é abertamente aliado da extrema-direita global e, claro, brasileira, e colocou essa prioridade ideológica adiante de muitas das suas relações internacionais. Sob a gestão Biden, os Estados Unidos tiveram um papel muito importante na pressão internacional para que o golpe não prosperasse. Podemos dizer que é de se esperar que os Estados Unidos numa eventual gestão de Trump não teriam o mesmo tipo de atitude que tiveram agora. Como isso vai se dar, em que medida, sob que termos fica muito difícil para nós colocar já de antemão. A gente pode dizer que de alguma maneira a volta de Trump à Casa Branca seria uma ameaça a muitas democracias no mundo.

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