MUITO
A mão de obra artesanal brasileira é especial

Por Alezinha Roldan

Conheci Walério Araújo por intermédio de uma transexual que se tornou voluntária em um projeto que atende crianças com câncer. Enquanto conversava com ela, ainda estranhando a novidade de ter uma trans na equipe, falei sobre a dificuldade em conseguir fazer uma surpresa. Uma das crianças estava em estado terminal, iria fazer 15 anos e queríamos fazer uma sessão de fotos que culminaria com ela dançando uma valsa com o ator Caio Castro. Mas o que vestir em uma menina que, além da expressão de quem já tem consciência da proximidade da morte, pesava só 16 quilos? Lembro de ficar perdida na entrada do Edifício Copan, lugar mais do que underground e tudo a ver com o morador. Ele abriu a porta e disse: “Nem quero saber a história. Eu faço divas”. Enquanto esperava, eu, que até então nem havia falado meu nome, olhava encantada o apartamento. Ele voltou então, trazendo um saco gigantesco e disse: “Olha este vestido. Fiz para um desfile em Paris. Pode levar”. O vestido, cor-de-rosa, tinha três saias sobrepostas, cada uma feita com 150 metros de tule francês! Eu pensava: que criatura louca! Ele nem sabe quem sou! Ele olhou para mim como se lesse meus pensamentos: “Ninguém faz nada que você não mereça. Leva o vestido e faz a menina ter o momento de glória dela. São dos momentos de glória que a vida é feita!”. Nesta entrevista, o estilista pernambucano – um dos mais criativos e autênticos da moda contemporânea – fala sobre sucesso, rede social e arte.
Você nasceu em Pernambuco, mas tem ligação com a Bahia, onde iniciou a carreira como estilista profissionalmente (na cidade de Paulo Afonso) e morou um período. Essas viagens chegaram a ter alguma influência em seu trabalho?
Trabalhei um ano em Paulo Afonso e, depois, me chamaram para trabalhar na mesma loja, só que no centro de Salvador, na Avenida Sete. Fiquei um ano morando na Rua Direita da Piedade e, posteriormente, devido à saudade da família e dos amigos, voltei para casa. Morei lá cerca de seis meses e, em 1992, fui de vez para São Paulo. Algo que me influenciou muito foram os programas de televisão: Ney Galvão (estilista baiano, morto em 1991), Clodovil e, também, os concursos de miss. Sempre fui encantado por este universo!
Considera que a sua relação com o Mercado Mundo Mix, o universo das transformistas e travestis e, sobretudo, com Elke Maravilha construiu a base de seu trabalho? Qual a importância do encontro e da parceria com Elke em sua vida e em sua trajetória?
Depois dos três anos que fiquei trabalhando na Rua 25 de Março, em São Paulo, eu me senti meio limitado. Eu sonhava ver as pessoas circulando com minhas roupas. Foi a partir daí que resolvi ir para o Mercado Mundo Mix. Antes disso, passei três anos no Mambo, outra feira com o mesmo segmento, mas, naquela época, o Mercado Mundo Mix viajava o Brasil e tinha todos os designers que eu admirava, como Mário Queiroz, João Pimenta, Alexandre Herchcovitch, Chili Beans, A Mulher do Padre, Escola dos Divinos. Muita gente que eu adorava! Então, eu entrei e fiz esta feira por cinco anos. É um bom laboratório, até para você definir o estilo de produto que quer produzir e comercializar. Agora, veja, a Elke Maravilha super fez parte da minha vida e do meu trabalho, pois foi a primeira cliente que conheci. Nós nos conhecemos nos concursos de drag queens e travestis nas boates. Eu também me montava, então ela se interessou pelo meu trabalho. Foi muito importante, porque, logo que nos conhecemos, ela me falou “você sabe fazer tudo, Walério. Você é muito especial, medieval, muito estiloso”, e isso ela disse se dirigindo ao meu trabalho e a mim. A partir de então nós nunca mais perdemos o contato! Fiz muitos looks para Elke usar nos shows de calouros, então toda semana ela provava os looks, levava, depois vinha, trazia e pegava novos. Elke me influenciou muito, foi a minha musa maior. Até então, eu ainda trabalhava na 25 de Março e, quando não tinha clientes, ficava bordando e fazendo as cabeças que ela usaria. Ela foi, sem dúvida, a principal influência para que, hoje, tenha tamanha facilidade com arranjos de cabeça, pois exercitei muito, devido ao fato de os looks dela sempre estarem acompanhados de um arranjo na cabeça. Ninguém usava, mas ela adorava e dizia que tinha que aproveitar todos os momentos de glória da vida dela, que eram diários! Isso eu nunca esqueci. As drags também foram e são muito importantes na minha vida. Era um desafio tremendo fazer roupa de mulher para homem, pois cada uma tinha algo específico a se camuflar: os pelos do braço, da perna, por exemplo. Tinha que vestir um corpo com coisas superficiais, como peitos de espuma, quadril, entre outros. É um exercício maravilhoso criar roupas extravagantes com matérias-primas específicas. Os primeiros lugares em que morei foram dividindo apartamentos com drag queens e travestis. Tinha uma amiga que estudava esse processo de transformação e a outra fazia shows de drag. Vi nisso a oportunidade de ganhar dinheiro fazendo roupas para elas e para mim, porque, de alguma forma, eu queria fazer vestidos e apresentar, já que, até então, não havia ninguém que usasse para fazer a divulgação e dar uma visibilidade maior a isso. Esta questão também me realizava como artista e como pessoa.
Muitos o consideram o precursor da moda agender (sem gênero). Como vê esse universo hoje no mundo da moda? Como vê toda a polêmica e tensão em torno das questões de gênero?
Eu acho que o meu trabalho foi espontâneo porque não tinha a intenção de fazer um tipo de produto para um tipo de público específico com a intenção de chamar a atenção ou causar polêmica. Eu morava com drag queens e travestis, era o meu universo, a minha vida. Me deu uma visibilidade enorme, porque, claro, o fato de se tratar de drags e travestis era algo que chamava mais a atenção na época, são roupas mais extravagantes e mais elaboradas. Além de muito importante, esse trabalho me deu total visibilidade por se tratar de um produto específico. Eu também tinha um visual bem diferente, sempre gostei de usar um salto alto, então eu já representava esse gênero andrógeno. Isso funcionou como um marketing e me ajudou de forma muito positiva.
Outro barulho grande da mídia se dá em torno dos blogueiros e youtubers, que estariam, segundo alguns, ocupando hoje o lugar dos críticos. Ainda existem críticos de moda no país?
Eu acho que devemos tentar tirar proveito das novas mídias de alguma forma. Cada um deve tirar proveito do que acha que é relevante em sua própria vida. O meu Instagram é bem eclético, eu posto um pouco de tudo: viagens, comidas, festas, de mim, uma hora mais vestido, outra mais pelado, em alguns momentos vestido de homem, em outro fantasiado vestido de mulher. Com família, amigos. Posto minha mãe! Você expõe o que acha ser importante para você. Tem de se ter um cuidado para não ficar bitolado, pois hoje qualquer pessoa se acha uma celebridade, uma vez que em cada foto postada eles se sentem na obrigação de estar vestindo roupas diferentes, mesmo que seja apenas uma outra camiseta, pois se usarem a mesma roupa da foto anterior irão dar a impressão de que estão repetindo a cena. Tem que tomar cuidado com isso, porque pode virar doença. Em minhas redes sociais, eu procuro por um pouco de tudo, mostrar meu eu e meu universo também, mas sem paranoias.
Sua cachorra, a border collie Mazé, é uma blogueira fashionista famosa. Foi uma brincadeira que virou coisa séria? Em sua opinião, o que ainda precisamos aprender com as novas mídias?
Ela é o amor da minha vida. Eu tinha outra cachorra que já foi pro céu, se chamava Vivian. Ela era menor, andava muito montada e também ficou famosa. Na época não tinha essas redes sociais para dar essa visibilidade instantânea, mas ela chegou a sair nos jornais, revistas e participou de programas, como o Muvuca, da Regina Casé. Quando eu a perdi, senti uma falta imensa. Quando ela morreu, eu acho que demorou menos de um ano para que eu ganhasse a Mazé, que era um filhotinho e só tinha três meses. Um tempo depois, com essa onda de blogueiras, eu tive essa ideia de transformá-la em uma. Era como brincar de boneca com ela. Não tive a intenção de ela ficar famosa, muito menos de aparecer em tantas matérias em revistas importantes ou em televisão, mas isso tomou uma proporção maior do que eu esperava e acabou se tornando um compromisso. É o meu xodó e foi outra brincadeira que acabou me dando visibilidade profissional como stylist ao usá-la como modelo. A Mazé é uma mistura de border collie e é inteligentíssima! Ela praticamente conversa comigo, pois quem tem animal sabe definir o que eles querem, o que eles gostam ou não. Faz parte da família.
Você sempre defende o trabalho artesanal, o manual, e vem de uma família formada por costureiras e bordadeiras. Frequentemente, estilistas reclamam justamente da precariedade técnica dessas profissionais. Você concorda com essa visão?
Eu acho que temos uma riqueza muito grande de mão de obra em qualquer região do país. Na minha época, existia a cultura de a mulher fazer seu enxoval, então existiam cursos e revistas para quem quisesse aprender e ganhar dinheiro com isso. Na minha família eu via minhas irmãs fazendo ponto cruz, bordados de pedraria, crochê... Pintar, bordar e costurar. Literalmente. Acho que foi uma das coisas que mais me incentivaram, porque eu adoro esta mão de obra. Por isso eu gosto de fazer adereços para a cabeça, bordar roupas e customizar minhas coisas. Inclusive já me contrataram diversas vezes devido a esta mão de obra que eu tenho, mas acho que é algo que está difícil de ter continuidade, sim. Ao mesmo tempo em que a procura é grande, tem muita gente que precisa trabalhar, mas não quer. Não é fácil, é bem trabalhoso bordar uma roupa de forma correta, pintar e costurar. Estamos perdendo esta mão de obra, por mais que tenha muita gente precisando ganhar dinheiro, a maioria quer fazer em seu próprio tempo, e não podemos esperar, pois temos a produção e as encomendas para cumprir. Está cada vez mais extinta esta mão de obra, porque, apesar de financeiramente precisar, muitas pessoas não querem trabalhar com algo tão difícil. E no final todos os lados ficam precisando: elas precisam de trabalho, mas não querem, e nós precisamos desta mão de obra, mas não encontramos. Não sei onde isso vai parar, e é bastante preocupante. Eu tenho duas costureiras, Cecília e Miriam, que conheci quando cheguei a São Paulo e que, até hoje, costuram para mim.
Qual o lugar do artesanal hoje na moda?
A mão de obra artesanal é extremamente importante, tanto é que tem crescido muito. Apesar de o Brasil ter esta mão de obra maravilhosa, e em qualquer região você encontrar alguém que saiba fazer alguma coisa relacionada à arte, existia um preconceito, pois diziam que era um trabalho mais “popular”, então o preço teria que ser mais barato. Hoje isso mudou bastante! As pessoas sabem que quando se trata de um trabalho manual, o cuidado e o valor dados a ele têm que ser maiores. Antes, existia preconceito até com o uso de vestidos de crochê, mas hoje isso é considerado chique. Todos veem que, lá fora, peças como estas são muito valorizadas e muito caras. Diante disso, o brasileiro acabou valorizando este trabalho, pois sabe que um bordado de linha, de pedras, ou até mesmo uma pintura à mão demandam mais esforço e dedicação. Eu adoro pintar e bordar, exercito isso sempre que posso nas minhas criações. Acredito que é o que tem feito a diferença em meu produto, consequentemente fazendo a procura por ele aumentar.
Como vê a moda contemporânea brasileira?
A moda brasileira tem sido cada vez mais respeitada e aceita no mundo, porque, apesar de muitos estilistas copiarem, têm outros que estão ganhando força e segurança em um trabalho autoral. Isso é muito bom! A nossa moda tem ganhado cada vez mais respeito, visibilidade e procura. O mundo está procurando nossa mão de obra, e isso é visível. O que atrapalhou tudo, por estes tempos, não só a moda, foi a crise. Ela atingiu o trabalho geral, as empresas num todo. Mas, ainda assim, a moda brasileira tem se destacado cada vez mais e tem sido cada vez mais respeitada, e isso é bom para todo mundo.
Colaborou Kátia Borges*
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