MUITO
“A marginalização do funk é muito forte”
Professora Nadja Vladi discute música, identidade e territorialidade em seus trabalhos
Por Gilson Jorge
No próximo dia 21, às 14 h, a professora e jornalista Nadja Vladi participa de um seminário no auditório do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, discutindo música, identidade e territorialidade com os professores e pesquisadores Fabrício Mota (Ifba), Tatiana Rodrigues Lima (UFRB), Lucas Amorim (UFRB) e Tertuliana Lustosa, da banda A Travestis. Doutora em Comunicação e Cultura pela Ufba e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Nadja tem um legado importante na mídia baiana.
Ex-colaboradora de A TARDE, onde foi a primeira editora-coordenadora da Revista Muito e também editou o suplemento infantil A Tardinha, Vladi abraçou a carreira acadêmica e se dedicou a estudar cenas musicais, música pop e territorialidades, com foco nas periferias soteropolitanas. No rastro da criação do Dia Nacional do Funk, a professora discute a força desse e de outros gêneros musicais periféricos junto à juventude e defende a força política de movimentos como o paredão.
O Presidente Lula sancionou o projeto de lei que estabelece 12 de julho como o Dia Nacional do Funk. Essa decisão tem algum efeito prático? Serve para alguma coisa?
O funk já é um dos estilos musicais mais ouvidos no Brasil. Em termos de vendas, perde para o sertanejo, mas é um gênero que esteticamente está em vários estilos musicais. Esse é o reconhecimento do Estado brasileiro a uma manifestação cultural que tem um valor na cena cultural brasileira. Quando eu soube disso, lembrei do que foi feito com o samba por Getúlio Vargas. Não estou fazendo comparação a Lula, mas lembrei de quando Getúlio escolheu o samba como música para uma identidade nacional do Brasil em 1930, como ato arbitrário de uma ditadura, que é diferente de agora.
O interessante, no caso, é que o samba também vem de um processo de marginalização e passa a ser a música representativa do Estado brasileiro. E o funk é também uma música muito marginalizada. E aí o presidente Lula faz esse movimento de reconhecer a contribuição cultural do funk carioca, de como ele é popular e relevante para boa parte da população brasileira que ouve funk, que trabalha com funk. O funk é um espaço de sociabilização importante em várias periferias do Brasil. Em Recife, tem o brega funk. A gente vai ter também o funk nas periferias de São Paulo, interseccionando com outros estilos musicais. Aqui na Bahia, por incrível que pareça, há opções estéticas do funk, inclusive no piseiro e no pagode.
Se você for pensar naquela música de Leo Santana, Zona de Perigo, já vai ter ali referências estéticas do funk. Mas a marginalização do funk é muito forte, há um histórico de criminalização que cerca o gênero musical porque ele nasce nas favelas cariocas. Tem um livro muito interessante do Micael Herschmann, O funk e o hip hop invadem a cena, que mostra as associações do funk a uma extensão do crime.
E em 1992, quando acontecem os arrastões, a imprensa começa a vincular um ao outro e imediatamente cola essa imagem de que o funk é o lugar do crime. Eu lembro de ter visto matérias no Jornal Nacional fazendo ligação entre os arrastões e o gênero musical.
A ideia de que a juventude da favela é violenta e tem como trilha sonora o funk. Eu não sei se quando Lula sanciona o Dia Nacional do Funk isso muda, o gênero continua marginalizado, mas nos últimos 20 anos há uma mudança substancial nesse lugar do funk, com esses bailes cada vez mais frequentados pela Zona Sul e a imersão de artistas do mainstream no funk também. Ou mesmo o fato de que Anitta é o grande nome da música nacional.
E foi escolhida para as exibições solo de Rebeca Andrade na Olimpíada de Paris...
Além disso, Rebeca Andrade usou Beyoncé, Anitta e Baile da Favela. Você vê o lugar que o funk ocupa hoje no cenário nacional. Uma medalhista de ouro, a melhor atleta olímpica do Brasil, que é Rebeca Andrade, usa o funk. E tem a inserção do funk em vários estilos musicais brasileiros.
É inegável a força do funk na periferia brasileira como espaço de sociabilidade. As pessoas vão se divertir naquele espaço. A criminalização do funk é o grande equívoco. Em qualquer gênero musical você vai ter pessoas ligadas ao crime, principalmente em um espaço que não tem a presença do Estado, onde o Estado só entra com a polícia para matar. É um lugar estereotipado e toda cultura que vem dali é estereotipada também.
A meu ver, isso faz parte da nossa herança racista, de escravização, de colonização, de ver esse lugar periférico de pessoas negras como o outro a quem a gente deve temer. Isso aconteceu com o samba no século 19 e século 20. E que acontece com o pagode e os paredões em Salvador e Região Metropolitana, que estão nessa ideia de marginalização. No Rio de Janeiro, há um traficante que proíbe os bailes funks no bairro dele e ele é evangélico. E não há ninguém dizendo que música gospel é coisa de bandido.
Mas mesmo na intelectualidade de esquerda há alguma resistência ao funk. Há críticas sobre uma suposta objetificação da mulher e que, juntamente a outros estilos populares, como o sertanejo, são alienantes e sufocam outras musicalidades. Como a senhora vê isso?
Eu vejo isso de uma maneira distinta. É uma manifestação que tem o corpo ali muito fortemente. E há uma certa tendência da intelectualidade branca, da branquitude, de negar o corpo. Toda vez que você coloca o corpo de frente ele é mal visto. Supostamente, o mais importante é o intelectual, a cabeça. Chico Buarque tem músicas que podem ser consideradas machistas, mas ele nunca vai ser colocado no lugar do funkeiro que fala mais abertamente sobre sexualidade.
Uma das características do paredão, por exemplo, é ter esse acento sexualizado. As pessoas curtem isso. É uma objetificação necessariamente do corpo da mulher? Não vejo assim. É uma estética. Eu penso muito a partir do antropólogo baiano Osmundo Pinho, da UFRB, que é o corpo como um espaço de resistência.
O corpo negro não é objetificado? Então, traz-se o corpo como forma de confronto mesmo. É político, um corpo muito mais político do que objetificado. Claro que boa parte das feministas pode discordar de mim. Eu também sou feminista, mas eu vejo de uma outra forma pela convivência que eu tenho tido em campo, principalmente nos paredões.
Eu tenho uma mestranda, Tertuliana Lustosa, que tem uma banda, A Travestis, que mostra o lugar das políticas da putaria [termo usado pelo jornalista e pesquisador pernambucano GG Albuquerque], que é pensar a putaria como um espaço político. Um lugar que a cultura ocidental, a branquitude, vê com uma série de restrições.
É possível, então, pensar o funk e outros gêneros musicais periféricos como instrumentos de empoderamento da juventude, a voz política de novas gerações que buscam o reconhecimento de suas existências?
Eu não sou especialista em funk, estudo música e territorialidade, identidade, e estou muito centrada na cena musical de Salvador. Há um livro muito interessante sobre isso da pesquisadora Simone Pereira de Sá, chamado Música pop periférica brasileira: videoclipes, performances e tretas na cultura digital, em que ela vai trazer exatamente o tipo de valoração que recebe essa música periférica, funk, pagode, o funk brega de Recife, como se não fosse uma música de qualidade.
Na verdade, esse é um espaço que os jovens utilizam de forma política mesmo. Mas são músicos de muita qualidade. Aí a gente pode falar do rap. Os Racionais, por exemplo, é um grupo importantíssimo para os jovens pretos da periferia. Ele foi uma espécie de letramento racial para muita gente. Eu converso muito com meus alunos sobre como Sobrevivendo no inferno e os outros primeiros discos dos Racionais foram uma virada de chave para eles.
É muito grande para essas pessoas, uma representação muito grande. E a branquitude está sempre deslegitimando esse lugar, inclusive usando o aparato policial para marginalizar, como fez com o funk, como está sendo feito com o paredão aqui. A gente quer simplificar as coisas, mas as coisas são muito complexas. É a música como um lugar político importante. O Fantasmão traz para dentro do pagode letras que provavelmente foram inspiradas nos Racionais, para falar da favela, da violência policial. Enquanto a gente tem um pagode baiano dos anos 90 que era aquela coisa mais ‘segura o tchan’.
Estamos perto das eleições municipais, o que me lembra que apesar dessa marginalização da música periférica, há alguns anos os jingles dos candidatos majoritários são quase todos um pagodão, para se comunicar com o povo...
É a música mais ouvida na periferia de Salvador, não tenho a menor dúvida disso.
A senhora escreveu há algum tempo um artigo sobre o uso político que o Baiana System faz do espaço de Carnaval. Em Lucro, eles citam construções na praia, especulação imobiliária, meninas de minissaia que não conseguem respirar. Como vê a chegada desse grupo à cena?
Eu tenho pensado muito sobre o Baiana System ultimamente. Essa banda é reflexo de uma cena musical negra que a gente tem em Salvador a partir do Ilê Aiyê. O Ilê começa como um movimento cultural e político. Um bloco em que só vão sair negros, que tem como referências o movimento negro norte-americano, do soul.
Vovô ia para as festas escutar James Brown, Jackson Five. E ao mesmo tempo estava ligado à independência dos países africanos, essa ideia, esse movimento de Atlântico Negro que Paul Gilroy traz, principalmente o Atlântico Negro Sul, que é o que nos interessa mais aqui. O Olodum traz o reggae, Bob Marley.
É sempre um movimento político. A axé music é capturada de alguma forma pela branquitude, mas você depois vai ter uma reafirmação dessa cultura negra com o pagode. O Fantasmão foi importante para ter tido depois o Baiana System, mas foi importante também a gente ter tido toda essa história musical negra. O Baiana System, de certa forma, negocia com os blocos afros.
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