CRÔNICA
A Morte zonza na feira
Confira a crônica de Franklin Carvalho
Por Franklin Carvalho*
A Morte usa somente um camisolão de chita, e não carrega nada a não ser as almas, após retirá-las dos desmaiados. E, mesmo assim, por um pequeno instante, até dispersá-las como fumaça.
Geralmente a Morte anda depressa e aflita, mas, numa segunda-feira, perto do mercado, encontrou uma moeda e tomou uma aguardente pela primeira vez em eternos anos.
Todos sabemos que o mercado é tudo que a Morte não é: o cheiro misturado das frutas, a farinha voando ao sol entre as lonas das barracas, os frangos que resmungam amarrados, o café mais quente e forte e doce que há, o brilho dos peixes lustrosos com seus olhos petrificados, um fio de esgoto que perpassa tudo, as mangas maduras úberes de suco, as bananas flácidas, os requeijões transpirando gordura, o melaço, os méis, as dentições dos alhos, as folhas para banhos, milhões de meninos trabalhando, adultos xingando palavrões medonhos, as maçãs das faces dos jovens, os decotes das mulheres, os músculos dos homens e as carnes suspensas por ganchos de calça.
A Morte, coitada, ficou doidinha com aquilo, e então se perguntou por que provocava tanta tristeza e espanto nas pessoas. Logo ela, que já vinha anunciada desde a infância dos indivíduos! Queria mesmo aderir aos humanos como companheira.
De repente, seus olhos se encheram de água e um estranho mormaço a paralisou. Sentiu a mente pesada e exausta, morta mesmo. Tantos séculos, e só uma vez descansara, numa Páscoa.
Ela entendeu então que aquele seu delírio no mercado era o efeito da cachaça. Notou em volta outros homens ébrios, uns vivos e outros falecidos, e esses companheiros da circunstância lhe deram cajus, carne assada, milho cozido, camarão e passarinho fritos e mais o que se come com pinga.
Finalmente, lembrou-se de que mastigava sem dentes, e pegava sem braços nem mãos nem dedos. Que era ausente como os defuntos nos burburinhos dos velórios, e nem isso pesava contra si, somente mais uma anônima na feira repleta de gulodices.
Refeita, sorriu seus dentes repletos de terra.
Viu que qualquer mágoa podia ser curada com um prazer efêmero, como aquela sensação embriagada de um trago. Ou qualquer sentimento semelhante, acessível aos distraídos, de breve desfalecimento, de se deixar ser zonza, bronca, por um lapso, sem culpa.
Qualquer gosto ordinário, que assenta a toda a gente, e que alarga no peito cansado um infinito só nosso.
*Franklin Carvalho é escritor, autor de Tesserato – A tempestade a caminho (Ed. Noir)
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