CRÔNICA
A poesia de Itaparica
A ilha, até então de João Ubaldo Ribeiro, passou a despertar novos encantos
Por Armando Martinelli*
Atravessar o sonho, despertar imerso em poesia. Essa foi minha sensação ao chegar em Itaparica (BA) para uma residência artística no Instituto Sacatar, período destinado ao refúgio, ao abrigo do tempo em prol da escrita criativa. A ilha, até então de João Ubaldo Ribeiro, das praias avistadas em fotografias, do imaginário fértil povoado pelo mar, logo passou a despertar novos encantos, gerar pensamentos e reencontros com a história do próprio país.
Dentro da ilha, do casulo artístico, do estúdio de trabalho, da cabeça, poucos passos para me banhar na praia, em memórias afetivas, poucos passos para (re)descobrir fatos que as narrativas oficiais ocultam, ou comentam de passagem. O 7 de setembro de 1822, ilustrado no quadro de Pedro Américo, avistado no Museu do Ipiranga quando criança, não encerrou as lutas pela liberdade do país, mesmo com Dom Pedro coroado monarca brasileiro, em outubro do mesmo ano. Revendo alguns textos destinados ao momento histórico, em rápida pesquisa na internet, encontro citações genéricas como: "Houve conflitos após a declaração da independência, na Bahia, no Pará, no Maranhão e na Cisplatina". Houve conflitos...
Surge um busto, uma placa, um quadro, um letreiro: “Itaparica, terra de Maria Felipa”. Surge uma palestra na biblioteca Juracy Magalhães Junior, de historiadores locais para adolescentes de escolas municipais. Um dos palestrantes pergunta: Quem poderia falar quando ouviu pela primeira vez o nome de Maria Felipa? “Eu deveria ter seis anos”, responde uma das meninas, “foi minha avó quem me falou sobre ela”. Nesse momento, pensei: eu ouvi há poucos dias.
Assim como a descoberta de Maria Felipa, outros heróis tomam forma, fazendo do caminhar pela ilha uma possibilidade de reencontro, de se sentir mais brasileiro, em tomar conhecimento sobre o 7 de janeiro, dia do Caboclo, em Itaparica, e o 2 de julho, independência de Salvador, ambos em 1823.
O olhar mais atento às lutas baianas possibilita, inclusive, decifrar mensagens que a música já havia trazido. O corneteiro Luís Lopes tocou e trocou na canção do Baiana System, sendo crucial para o sucesso das tropas nacionais na batalha do Pirajá. O militar que desobedece a ordem superior e, ao invés do toque de recuar, toca o de avançar, surpreendendo e assustando os portugueses. A rebeldia como força da ação heróica.
Em tempos de conservadorismo tão aflorado, com as crescentes tentativas das igrejas neopentecostais, e dos políticos a elas vinculados, de subordinar as esferas da vida social a uma visão única e sectária de uma religião, reverenciar a rebeldia torna-se ainda mais um ato poético.
Poesia essa que se agiganta no mergulho em Maria Felipa, mulher, negra, analfabeta, que usou a folha de cansanção para lutar contra os portugueses. Encontro uma placa centenária em homenagem aos heróis da independência local. Vejo que Maria Felipa está entre os citados, mas descubro que seu nome foi incluso há cerca de 12 anos. É o último embaixo dos homens. A homenagem, com certeza, ficaria ainda mais bonita se tivesse a ordem invertida.
Tomo conhecimento que sua própria existência vira e mexe é contestada, apesar dos textos de Ubaldo Osório e Xavier Marques, das descobertas de documentos recentes que comprovam sua residência na rua da Gameleira. Novamente, em tempos que afloram pautas conservadoras, especialmente contra os direitos das mulheres, a reverência por Maria Felipa se faz ainda mais vital, e, duvidar dos seus feitos, significa abafar outra heroína negra desse país, corroborar com às narrativas oficiais que apequenam nossa história.
Depois de um mês em Itaparica, bebendo da fonte da bica, tomando banho nas águas de Venceslau Monteiro, tendo ciência da importância histórica das baleias, vivenciando a pluralidade religiosa, levarei comigo a lembrança de tantas belezas naturais, o acolhimento e sorriso das pessoas, a importância de (re)conectar uma parte da história do Brasil, e, assim, cultuar a força da resistência do povo baiano. Viva Maria Felipa, viva toda poesia de Itaparica!
A ilha de Maria Felipa, João Ubaldo Ribeiro, Venceslau Monteiro, das marisqueiras, pássaros, siris, borboletas das águas sagradas cada movimento revela um cenário cada passo um redescobrimento onde baleias e eguns convivem onde o Tempo refaz o tempo.
*Armando Martinelli (@armando_martinelli_nt) é autor dos livros Cabeça do cão na fenda do muro (Patuá, 2023), A luz do abismo (Urutau, 2022) e Recital das Reticências (Urutau, 2018).
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