DOCUMENTÁRIO
A potência sonora do Nordeste de Amaralina
Bairro foi escolhido para ser palco da gravação da série documental Favela.doc
Por Pedro Hijo
O Nordeste de Amaralina foi um dos oito bairros do Brasil escolhidos para ambientar a série documental Favela.doc, que retrata a cena musical periférica no país. O único de Salvador. Criado por pescadores, o bairro participou da formação de músicos como Luiz Caldas, membros do grupo Quabales e percussionistas da Timbalada e do Olodum. No documentário, gravado no bairro no mês passado e com lançamento previsto para 2025, é o grupo TrapFunk&Alívio que tem a história contada.
O grupo que funde estilos musicais nasceu da união de cinco jovens que tocavam em festas do bairro e, para a diretora do Favela.doc, Viviane Ferreira, representa a inovação da cena do Nordeste de Amaralina. “Eles fazem música para a quebrada. Estão menos preocupados com o que o mercado ou os selos vão achar e mais preocupados em como vão colocar a própria comunidade para balançar, e fazem isso de um jeito apaixonante e conectado com o mundo”, explica Viviane.
Criador do projeto social e banda Quabales, o músico e compositor Marivaldo dos Santos define o bairro como um “celeiro cultural”: “O Nordeste de Amaralina não só influencia até hoje o Quabales, mas a história da música baiana”. Marivaldo cita como exemplo dessa importância a escola de samba Diplomatas de Amaralina, fundada no bairro pelos pais dele, e a participação dos terreiros de Candomblé do local na formação musical dos moradores.
“O Olodum e a Timbalada começaram com uma base percussiva de uma galera do Nordeste de Amaralina”, diz Marivaldo. O Quabales, explica o músico, é fruto de uma mistura de ritmos. Foi criado na primeira sede da academia de capoeira de Mestre Bimba, no Nordeste, com gêneros musicais como jazz, rap e funk americano, além de ritmos da Bahia. Como projeto social, o Quabales já atendeu mais de cinco mil alunos com aulas de violão, canto, percussão, robótica, inglês, capoeira e dança.
Seguindo a vocação do bairro para a fusão e coexistência de ritmos musicais, o TrapFunk&Alívio mistura diversas referências desde 2016, quando o grupo foi criado. Formado pelos músicos Banha, DJ Allexuz, Mannolipe, MC Sagat e Mano Sabota, o coletivo se conheceu tocando em festas do bairro. “Cada festa tinha um DJ favorito, um tocava funk, o outro tocava pagodão, e a TrapFunk&Alívio é um recorte de cada um desses grupos que se reuniam”, diz Banha, que é DJ e diretor musical do coletivo.
O músico explica que o nome do grupo surgiu por causa da mistura de influências. “A gente bebe de ritmos mais intensos como o trap, rap e o moombahton, com outros mais suaves, como o eletrônico do deep house, o que dá uma aliviada na música”, explica Banha.
A ousadia do TrapFunk&Alívio foi o que chamou a atenção da cineasta Viviane Ferreira. Ela conta que um fator importante durante a curadoria de artistas para o documentário foi a forma como cada um deles se relaciona com as comunidades que moram. “Não importou tanto para a gente se aquele artista estava na mídia ou não”, diz. “O TrapFunk&Alívio vive o Nordeste de Amaralina de maneira visceral e isso transcende na música deles”.
Documentar a cultura periférica sempre foi algo muito natural para Viviane, que nasceu no loteamento Coqueiro Grande, no subúrbio de Salvador. Ela saiu da capital com 19 anos e se mudou para São Paulo para estudar cinema. A vontade de criar a série Favela.doc surgiu depois de presenciar o festival Favela Sounds, em Brasília, em 2017. “Fiquei apaixonada pela estética, eu tinha que levar a magia daquele palco para o audiovisual”, conta a cineasta que dirigiu a sequência do filme O Pai, Ó, lançado no ano passado.
De acordo com Viviane, o documentário testemunha a propriedade que a juventude tem de suas comunidades. “Salvador é uma cidade periférica porque é tomada de gente preta e se tem um negócio bonito de se ver é como, ainda que insistam em criar barreiras, a pulsão de vida do jovem o faz tomar a cidade”, elabora. Além da capital baiana, a cineasta vai retratar grupos e artistas em Brasília, Recife, Belém, Rio de Janeiro e São Paulo.
Promoção
Esse ímpeto artístico da juventude dos subúrbios brasileiros inspirou Marivado a criar o selo Favellê, há quatro anos. O Favellê, explica o produtor, impulsiona e investe na carreira de músicos da periferia. Pelo selo, já foram lançados nomes como os da cantora de MPB Ana Sales e do rapper Moura X, primeiro artista selecionado a alcançar a marca de 100 mil ouvintes no Spotify. De acordo com Marivaldo, mais de 50 artistas integram uma lista de espera para serem lançados pelo Favellê.
O criador do Quabales replica com artistas brasileiros o conhecimento que adquiriu trabalhando com músicos de sucesso nos Estados Unidos, onde mora desde os 21 anos. Por lá, Marivaldo já participou de discos dos cantores Sting e Lauryn Hill e integra o grupo percussivo Stomp.
O mercado musical americano sempre foi algo que inspirou Marivaldo. “Aqui tem espaço para uma Beyoncé, mas também tem espaço para quem está começando, a própria indústria busca por gente nova e essas possibilidades são criadas”, pontua. “No Brasil, eu quero criar essas possibilidades também”.
A banda Quabales, próximo artista que será lançado pelo selo Favellê, é um exemplo de que esses investimentos estão dando resultados. A banda já tocou com artistas como Daniela Mercury e Ivete Sangalo e subiu ao palco do Rock In Rio para uma apresentação com Margareth Menezes, em 2017. O TrapFunk&Alívio segue o mesmo caminho. Em 2019, o grupo tocou no festival Virada Salvador e, em 2021 e 2023, no festival Afropunk.
Parcerias
O grupo também tem buscado fazer parcerias com artistas de fora da Bahia. “Passamos a fazer muitas colaborações, tem uma icônica, com um artista sul-africano, que rendeu o nosso primeiro clipe”, explica Banha. A parceria internacional com o rapper e pastor de ovelhas Morena Leraba aconteceu por meio de um produtor americano, que finalizou os dois álbuns do TrapFunk&Alívio.
Da colaboração, surgiu o primeiro clipe do grupo, financiado com um prêmio que Morena ganhou na África do Sul pela música Impepho, com o coletivo baiano. “Foi algo muito novo e muito sofisticado fazer uma conexão eficiente com um artista da África do Sul”, diz Banha. A projeção que o grupo tem ganhado é reforçada com a participação no documentário. A conexão com Viviane surgiu por meio do festival Favela Sounds, onde o TrapFunk&Alívio se apresentou em 2021.
Segundo a cineasta, a produção da série documental está em negociação com plataformas de streaming para disponibilizar o conteúdo no ano que vem. Viviane destaca a importância de promover a música de periferias brasileiras para grandes audiências: “Nosso objetivo foi transformar o Favela Sounds em série e levar um pouco do festival e dos artistas para atingir milhares de pessoas”.
Banha conta que as incursões para fora do Nordeste de Amaralina têm provocado um descolamento do bairro, na perspectiva dos vizinhos. “O pessoal acha que a gente não mora mais aqui”, comenta. O DJ reforça, no entanto, que os moradores e a rotina do bairro fazem parte da música do TrapFunk&Alívio, que já promoveu um festival no Nordeste, o Móvisu. “Foi um evento multivisual em que a gente convidou artistas para tocar com a gente. Queremos fazer mais edições e outras ações no bairro”, diz o diretor musical.
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