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Aflição e reencontro em Timóteo Lopes
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Por Luiz Freire*
A xilogravura tem sido uma modalidade muito adequada aos artistas que pretendem estabelecer uma relação intensa com o ato artístico. É também o meio mais antigo de multiplicação das imagens. O expressionismo conferiu a essa técnica especial predileção no afã de uma comunicação emotiva com o fruidor. Interessava aos modernistas o embate físico entre o indivíduo, mediante ferramentas, com as madeiras – embate proporcionador de imagens veementes e que permaneceu como legado na História da Arte.
Outro desenvolvimento toca no interesse artístico pela “decrepitude” da velhice, tema evitado na Grécia Clássica, mas preferido no período Helenístico e amplamente praticado nos retratos romanos. Marca a introdução do conceito feio/belo, que ganhou relevo no barroco e no romantismo, momentos da arte ocidental (Europa e sua área de influência) em que se valorizou a dramaticidade e a empatia. São, portanto, as bases do trabalho de Timóteo Lopes (Salvador, 1988): a xilogravura, embora também trabalhe com a gravura em metal, o retrato de homens e mulheres velhos e a escala monumental.
Trabalha as grandes pranchas de compensado laminado de madeira, copaíba e cerejeira com muito esmero, pois pensa na existência dupla e independente de matriz e cópia impressa, sendo primordial que a matriz esteja entintada. Contudo, em alguns trabalhos, o impacto visual é maior nas matrizes que nas cópias, muito pela maneira que cria suas próprias goivas e fere a madeira com aflitos sulcos.
Efeitos –
Entre as inovações de Timóteo Lopes estão a maneira específica em que fere a madeira e os efeitos conseguidos a partir das ferramentas improvisadas, fabricadas com material descartável, que respondem com eficiência às suas intenções. Transforma câmara de pneus de bicicleta em rolos para entintar, imprime usando rolos de concreto, fabrica suas goivas afiando-as em esmeril, usa o peso do corpo para imprimir as gravuras maiores, impossíveis de serem impressas nas prensas.
O material para gravura é muito dispendioso, o metal (cobre) é muito caro. Em geral, os alunos da EBA compram uma placa e dividem em várias, rateando o custo. Sua opção pela xilo também é determinada por questões financeiras. Com tal ferramentaria, Timóteo define o seu modo particular, os sulcos são curvilíneos, às vezes curtos, às vezes longos, “esses” nervosos aflitos provocadores de tensão contínua entre o claro do ferimento e o escuro da superfície entintada.
O artista usa a fotografia para o desenho geral, para o zoneamento de claro/escuro, o mais, porém, decorre de sua ação persistente, aflitiva, catártica. Quando pode trabalha na matriz sem cessar, necessita desse esforço. Os sulcos nervosos são comparáveis com as pinceladas das últimas pinturas de Van Gogh. A força das imagens criadas, retratos reconhecíveis e não reconhecíveis, tanto podem ser percebidas à distância quanto bem de perto, dando para imaginar o odor do suor e o arfar do cansaço da manufatura.
Mestre Duda –
Mestre Duda, Eduardo França dos Reis, é um homem negro, alto, que frequentou o ateliê de gravura da Escola de Belas Artes por muitas décadas. Nesse ateliê, teve aulas com Henrique Oswald, Mario Cravo Jr., Hansen Bahia e Lobianco (Brito, Reynivaldo, 2023). No ateliê, produzia gravura, auxiliava os professores e, em várias ocasiões, os substituía, sem remuneração alguma, pois rejeitava a ideia. Tal dedicação durou até pouco tempo.
Aos 85 anos, teve sua saúde debilitada, mesmo assim, quando escapava da vigilância familiar, ia direto para o ateliê da EBA. Apesar de silencioso e ensimesmado, angariou a simpatia de várias gerações de alunos. A EBA encomendou a Timóteo o seu retrato, cuja matriz xilográfica mede 175x130cm, que será posto no ateliê, passando esse espaço a ter o seu nome. O rosto do velho negro aparece claro e iluminado em um fundo totalmente negro. O retrato executado por Timóteo apreende, eterniza e presentifica o mestre em merecida homenagem.
Reencontro –
Em 2019, em uma feira de arte na EBA, Timóteo me causou espanto ao oferecer a preços irrisórios tudo que produziu em gravura, inclusive as matrizes. Conversei rapidamente com ele sobre as motivações do desespero. Ele declarou que havia uma pressão para que ele fizesse algo, se profissionalizasse em uma área que garantisse sua sobrevivência e seu projeto de família. Aquilo me tocou sobremaneira e, atônito, devolvi uma matriz de cobre que peguei para comprar, antes de saber o motivo daquela liquidação.
Timóteo, como inúmeras pessoas no Brasil, foi criado unicamente por sua mãe, uma professora. Não conheceu o pai (militar, combatente na 2ª Guerra Mundial), nem os irmãos do segundo casamento. Desde criança pintava com a maquiagem da mãe os espaços da parede do quarto, ao lado da cama, de modo que não fosse percebido, mas sua mãe não desgostava da sua traquinagem.
Foi direcionado para cursar arquitetura e iniciou o curso, mas logo optou pelo Bacharelado em Artes Plásticas, encontrando o ambiente que ansiava, compensando as deficiências do curso com aulas e experiências particulares.
Seguiu-se o período de reclusão ocasionado pela pandemia da Covid-19. Justamente nesse período, Timóteo deu uma guinada na vida, desistiu de renegar a arte, adquiriu uma casa-ateliê na Ladeira do Baluarte, no Santo Antônio Além do Carmo, montando-a com os equipamentos que pôde, ingressou no Mestrado em Artes Visuais, casou, teve uma filha, Sara, e reencontrou-se com os propósitos artísticos.
Traços do invisível –
De 3 a 24 de setembro de 2024, Timóteo realizou na Galeria Cañyzares da Escola de Belas Artes da Ufba a exposição de conclusão do Mestrado, orientado pelo professor Edgard Oliva. Intitulou-se Traços do invisível, reunindo matrizes e gravuras de dimensões que variaram de 160x220cm a 40x40cm, predominantemente retratos, cujos títulos imprimem subjetividade a exemplo de Ressurgência do silêncio, Mente apertada, Distopias transcendentais, O início do fim, A saudade entre lobos e ovelhas, Que tal o impossível?, Mentiras poéticas sobre o renascer, Traços do tempo, Da sutileza à brutalidade, Parecia sábado e a justiça se despia, A despedida de Dona Flor. Contrasta a veemência de seu trabalho com a aparência física franzina e frágil. Os únicos retratos identificados com o nome do retratado são o de Mestre Duda e o de Bituca (Milton Nascimento). Conferiu ao autorretrato o significativo título de Reencontro.
*Doutor em História da Arte, professor da Escola de Belas Artes (Ufba) e museólogo
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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