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OLHARES

Afrocentridade e ancestralidade em Raízes: começo, meio e começo

Confira a coluna Olhares

Por Milene Migliano*

15/09/2024 - 3:00 h
Imagem ilustrativa da imagem Afrocentridade e ancestralidade em Raízes: começo, meio e começo
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Ao adentrar os portões do Muncab, a obra de Alex Igbô, Magia Negra, saúda o público com a montagem de colagens de lambe-lambe coloridos com palavras encanto. Ao lado estão obras reverências ao Orixá Exu, o portão em aço envelhecido com o desenho de Rodrigo Siqueira, Exu! Sol do Caminhar, a instalação oferenda de Doté Amilton Costa, Legbá, e a escultura em madeira de demolição do Pelourinho, Exú Orisá, de Sandro Sal da Terra, artista presente em diversos outros espaços da exposição, articulando a potência criativa do bairro à legitimidade artística museal. A entidade que abre os caminhos dos trabalhos, rituais e celebrações na cultura candomblecista, é ainda evocado no grafite de Éder Muniz com os desenhos de cabaças, um galo e a entidade, ao lado do assentamento.

Raízes: começo, meio, começo é o título da exposição que está no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira em Salvador, o Muncab, na Rua das Vassouras, no Pelourinho. Começo, meio, começo é entendimento contra-colonialista compartilhado por Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, falecido recentemente, mas muito vivo em seu legado quilombola ancestral. Ao enfatizar a circularidade do movimento diferentemente de um fim ao ser alcançado, Bispo evidencia uma proposta de emancipação do pensamento ocidental direcionado a um objetivo.

Com mais de 200 obras de 86 artistas, 80 deles negros e 56 baianos, a proposta curatorial afrocentrada de Gil Soares e Jamile Coelho, gestora do Muncab, oferece um percurso entre cinco eixos temáticos, que transcende a narratividade linear: Origens, Sagrado, Ruas, Afrofuturismo e Bembé do Mercado.

A pintura que reverencia uma entidade cigana com flores vermelhas no cabelo e um charuto na boca, da artista Anna Zeferino, Cada passo dado hoje está escrito na pegada deixada ontem, da série Retomada, está ao final da parede das mulheres, no espaço do eixo temático Sagrado, e tem uma correspondência com a fotografia de Maria Joana, registrada em 13 de maio de 1982, em Santo Amaro da Purificação, na Festa do Bembé do Mercado; as obras são entrelaçadas e nos fazem cirandar com a experiência e vivência negras ali pulsantes.

Revolução vitoriosa

Máscaras, esculturas e objetos rituais provenientes de Angola, Congo, Benin e Brasil, compõem o início do eixo temático Origens e logo nos apresentam um outro modo de identificação de autoria “não identificada”, ao invés de “autoria desconhecida”. Ao situar o desejo fulcral de realização da exposição, Jamile Coelho, em nossa visita comentada, ressaltou a importância de uma mudança ética do tratamento curatorial, enfatizando a perspectiva da “revolução vitoriosa” da diáspora africana.

No eixo temático Sagrado, na série fotoperformance Óculos de Okotô, da artista Keila Sankofa, a floresta amazônica é ambiência para a existência de uma entidade encantada com olhos de búzios, concha marítima que proporciona a leitura do que pode o futuro no Ifá do Candomblé e que, em África, tinha um uso similar ao valor de moedas.

A volúpia vegetal registrada por Keila é fabulada na pintura Aruanda, de Ani Ganzala, que apresenta uma fila de mulheres que adentram uma mata, vestidas de saias floridas que se misturam com as flores que estão aos seus pés, mas também em suas cabeças, levadas em peças de cerâmica de barro, para um destino que adentra a perspectiva que exala natureza, umidade e frescor. A frase “Dias mulheres virão” está estampada próxima à tela, rememorando a luta constante contra o patriarcado.

A instalação Ilê Ti Okàn, de Éder Muniz, sua primeira obra no formato, cria espacialidades a partir da angulação da mirada do espectador em relação às cabaças que estão suspensas desde o teto; em seus interiores, as pequenas entidades que as habitam, fabulam Orixás em suas cabeças – Orí – fetos em úteros, seres sagrados em seus pequenos jardins.

No vídeo de pouco mais de 16 minutos de Urânia Munzanzu, Merê, acompanhamos duas viagens de Mães de Santo baianas; a primeira em busca da ancestralidade religiosa até o território do Recôncavo, em Cachoeira e São Félix, e a segunda até o Benin, na África, no qual as Mães de Santo se reconectam com seu território ancestral, ampliando seus entendimentos sobre suas próprias práticas ao encontrar ritos, danças e ritmos que lhes atravessam na Bahia. Em Raízes, o vídeo entrelaça Brasil e Benin reafirmando os laços e suas voltas que costuram os pertencimentos.

No eixo temático Rua destacam-se os ex-votos, esculturas de partes do corpo em madeira, entregues em capelas, igrejas e outros espaços de fé e adoração como forma de agradecer uma cura recebida após ter sido pedida pelos fiéis, naqueles espaços.

Coleção que foi doada por uma instituição cearense a Emanoel Araújo, que a dividiu entre o acervo de Salvador e o do Museu Afro-Brasil, em São Paulo, os ex-votos são produção popular, criação religiosa que resplandece cura e, ao mesmo tempo, a negação do direito à saúde a tais populações que não tendo a quem recorrer, se entregam ao tratamento pela fé.

A obra Fotoperformance Popular, de Alex Oliveira, enfatiza a variabilidade das vitórias em uma obra produzida a partir do encontro com pessoas em seus afazeres cotidianos em algumas cidades baianas. É feito um convite para que tais pessoas sejam fotografadas em um fundo infinito disponibilizado a partir da armação de um grande tecido nas proximidades daquele encontro.

Em Raízes, um excerto de 15 ampliações dispostas em cinco colunas nos aproxima de muitos centros diferentes, de cidades, de modos de vida. Ao fitar cada rosto/corpo retratado com os fundos azuis, amarelos, vermelhos e vinhos, sua subjetividade se avizinha e sentimos o calor, o perfume, quase o som das áreas centrais das cidades nas quais o artista produziu o acervo.

No Eixo Temático Afrofuturismo a escultura Busto Negro VII, de Brendon Reis, apresenta em sua altivez brinco de argola, batom rosa e pequenas pinturas azuis em todo o seu corpo, remetendo às iaôs em iniciação no candomblé. Por sua posição central na sala, a escultura se relaciona com duas pinturas de Heitor dos Prazeres, na parede ao fundo, na qual algumas pessoas brincam um carnaval, e também com as máscaras de Jayme Figura, artista baiano que percorria o território soteropolitano expondo suas criações em lata, ferro e outros materiais; Figura também nos deixou neste ano.

Sonhos futuros

A criação a partir de inteligência artificial generativa é protagonizada pela artista Mayara Ferrão, com a série Álbum de Desesquecimentos. A partir de comandos definidos para o programa, e sua reelaboração e ênfase no desejo da artista, Ferrão apresenta imagens que se assemelham a fotografias, nas quais o protagonismo é de mulheres negras expressando seu amor lésbico, seja diante de uma celebração ritual, seja em uma cama confortável em um quarto tropical, seja em uma banheira instalada entre bananeiras em um quintal. Se as imagens não puderam ser realizadas em um tempo passado, retratado nas produções da artista, ele é imaginário que se faz presente nas possibilidades de invenção de sonhos futuros.

Na instalação Vitorinha, de Nádia Taquary, as redes de peixe produzidas a partir do artesanato que conecta sementes são lançadas para um mar idealizado desde o barco Vitorinha; no canto da parede oposta, uma porção de peixes prateados reverencia a pesca, mas também a quebra do sentido de falta de controle das embarcações.

O barco nos conduz ao eixo temático Bembé do Mercado, que em sua breve historiografia da festa, ressaltando a sua importância simbólica para o povo negro, relembra a pujança da festa que puderam fazer as pessoas que até aquele primeiro de maio não tinham direito de liberdade e de expressividade. As fotografias Miroca no Padê de Exú (2023), e Pemba (2019), da artista Laís Lima nos mostram a potência da atualização do Bembé do Mercado nos tempos contemporâneos.

Na frase de Nego Bispo plotada no chão da exposição, a mensagem se faz, mais uma vez, evidente: “Nós somos o começo, o meio e o começo. Existiremos sempre, sorrindo nas tristezas para festejar a vinda das alegrias. Nossas trajetórias nos movem, nossa ancestralidade nos guia”.

*Doutora em Arquitetura e Urbanismo, jornalista e integrante da Associação Filmes Quintal

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

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