ABRE ASPAS
“Ainda temos cientistas que negam o racismo e a misoginia”
Confira entrevista com o astrofísico baiano Alan Alves Brito
Por Gilson Jorge
Segundo de seis filhos de uma família pobre do interior da Bahia, Alan Alves Brito nasceu em Vitória da Conquista e cresceu olhando o céu límpido das noites do sertão. Uma série de coincidências, como a queda de um raio na sua casa e a mudança para perto de um observatório astronômico levou o jovem a se interessar pelas estrelas. Na vida adulta, como astrofísico, escritor e professor, o baiano se tornou um destaque nacional na divulgação científica e venceu, em 2022, o prestigioso Prêmio José Reis de Divulgação Científica e Tecnológica, categoria Pesquisador e Escritor, nomeado em homenagem a um dos fundadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Alan conversa com A TARDE sobre a formação das estrelas, a luta para diversificar o perfil dos cientistas e o racismo dentro e fora da academia.
A sua infância no interior da Bahia, em locais com pouca iluminação elétrica, permitiu a contemplação das estrelas por muito tempo. Como foi essa experiência para o senhor e como se deu a sua aproximação com temas ligados ao universo?
Cada um de meus irmãos nasceu em um lugar diferente da Bahia. Painho trabalhava numa empresa de construção de rodovias e a gente viajava muito. Quando a gente morava em Valença aconteceu a queda de um raio na nossa casa e eu associei isso à passagem do Cometa Halley (1986). Havia muito alvoroço pelo cometa na época, as pessoas achavam que seria o fim do mundo. Eu fiquei com a queda do raio na cabeça. E também o céu na Bahia era muito bonito. Logo depois do raio, a gente se mudou para Feira de Santana, onde eu passaria boa parte de minha vida. Cheguei lá pequeno e só saí para fazer o mestrado e o doutorado na Universidade de São Paulo (USP). O céu de Feira também era muito bonito, a gente tinha parentes na roça, onde não tinha energia elétrica, e o céu era muito brilhante. E em Feira eu fui morar perto do Observatório Astronômico Antares, que na época nem havia sido doado à Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e eu já o frequentava.
Minha infância e adolescência foram muito voltadas à ciência, principalmente a astronomia. Eu assistia muito o programa Globo Ciência, da Fundação Roberto Marinho, que passava nos finais de semana e tinha o projeto Ciranda da Ciência. Aos 13 anos, lá em Feira, criei um clube de ciência, mas logo o projeto morreu porque eu não tinha como fazer as atividades que a Ciranda da Ciência pedia. Mas continuei com a ideia da ciência, de estudar o céu. Sempre fui fascinado por tudo de astronomia. Eu mandava mensagens para os astrônomos profissionais de São Paulo, de fora do Brasil. Recebia mensagens de Marcelo Gleiser (autor de A Dança do Universo), de astrônomos que eu conheceria pessoalmente depois. Minha infância e adolescência foram permeadas de muitas perguntas sobre o céu. Eu queria saber por que as estrelas brilhavam, o que era uma estrela. E eu não tinha essas respostas, não havia nenhuma conexão entre as estrelas e o que a gente aprendia na escola. Mas a astronomia era o lugar dos questionamentos. Quem somos? De onde viemos? Eu fazia muitas perguntas em casa e gostava muito de ler.
E o senhor acabou estudando mesmo as estrelas. Tanto no mestrado quanto no doutorado o seu objeto de estudo foram os aglomerados globulares ricos em metais...explique o foco das pesquisas, por favor.
Eu estudo as estrelas desde a graduação em física na Uefs. Quando comecei o curso, chegaram dois astrônomos de São Paulo que estavam voltando de um pós-doutorado na França para trabalhar como professores. Eu os busquei e comecei um projeto de iniciação cientifica com a a professora Vera Martins, trabalhando com estrelas. Fui bolsista do CNPq durante três anos, preocupado com a posição e o movimento das estrelas. No mestrado e no doutorado, trabalhei com a composição química das estrelas, tentando entender por que as estrelas brilham, o que mantém essa energia. Aí eu fui trabalhar com aglomerados de estrelas, que são objetos compostos por milhões de estrelas.
Então por que, afinal, as estrelas brilham?
A principal diferença entre estrela e planeta é justamente essa. As estrelas têm luz própria e os planetas refletem a luz. O que mantém as estrelas brilhando são transformações nucleares. No núcleo das estrelas, elementos químicos se transformam em outros. Para ser estrela, para brilhar, a gente precisa que no núcleo haja uma temperatura suficiente para que quatro átomos de hidrogênio se unam para produzir um átomo de hélio. Nesse processo, tem que haver liberação de energia. Essa liberação de energia é o brilho da estrela. E as estrelas vão fazer isso o tempo inteiro ao longo da vida delas. As estrelas são como nós. Elas nascem, vivem, não namoram e morrem (risos). E o que determina o ciclo de vida de uma estrela é a sua massa inicial. Algumas estrelas vão produzir elementos químicos mais pesados do que outros. Nosso sol, por exemplo, não vai converter elementos químicos mais pesados do que o carbono. Já outras estrelas mais massivas do que o sol vão produzir outros elementos químicos, vão transformar hidrogênio em hélio até chegar, por exemplo, ao ferro.
Qual o tempo de vida, em média, de uma estrela?
As estrelas que têm até dez vezes a massa do Sol vão viver bilhões de anos. Acima disso, milhões de ano. Quanto mais massiva a estrela, menos tempo de vida ela tem. Ela é gulosa, transforma tudo mais rápido.
A gente se fascina com as estrelas cadentes. O que é afinal uma estrela cadente?
O que a gente chama de estrela cadente não tem nada a ver com estrela. São objetos cruzando a atmosfera, meteoros. Objetos grandes que quando atravessam a atmosfera se esfarelam em vários pedacinhos. Quando esses pedaços atingem o nosso solo, chamamos de meteoritos. Esse clarão que acontece quando eles passam chamamos de estrela cadente, mas não tem nada a ver com estrelas.
Ou seja, as pessoas fazem pedidos para os objetos errados...
Isso é comum na astronomia. A gente usa muitos nomes que não são aquilo. Por exemplo, quem não sabe pensa que nebulosa planetária tem a ver com planetas. São os restos mortais de uma estrela do tamanho do Sol. Agora, o Sol está na metade da vida dele. Quando ele estiver morrendo, milhões de anos antes de morrer mesmo, ele vai virar uma nebulosa planetária. Aí ele joga na atmosfera a parte mais externa dele, e o núcleo quente dele vai ionizar o gás e formar aquela imagem bonita que a gente chama de nebulosa planetária, mas que não tem a ver com um planeta. Qual a confusão? Historicamente, quando se observava em um telescópio antigo, uma nebulosa e um planeta pareciam a mesma coisa, não havia resolução para diferenciar.
Em 2020, o senhor lançou o livro Antonia e a caça ao tesouro cósmico (Editora Appris), que tem como protagonista uma menina negra interessada pela ciência. E o senhor tem essa preocupação, coordena o programa de extensão Meninas na Ciência e sempre fala da predominância de homens brancos, heterossexuais, cisgênero e do Sudeste/Sul na ciência. Isso se discute nos meios acadêmicos? Há interesse por parte dos cientistas em tornar esse ambiente diversificado?
A gente está vivendo hoje um processo de tensionamento desses espaços. Imagine: 56% da população se autodeclara negra. E a maioria, mulheres. Mas quando a gente vai pensar a quantidade de professores e professoras nas universidades públicas, essa quantia é mínima – 90% das pessoas que estão trabalhando nos centros de pesquisa, diretores de laboratórios, museus de ciência são pessoas brancas. Em alguns desses lugares, somente pessoas brancas.
A gente não pode naturalizar isso.Nos processos dos movimentos negros, feministas, LGBTQIA+, indígenas e pessoas com deficiências, como parte da luta social, esses espaços estão sendo tensionados. A gente teve programas de cotas, ações afirmativas e há um tensionamento, mas esses espaços são dominados pelos perfis identitários de sempre, homens, brancos, que se colocam como heterossexuais e cisgênero. Muita gente do Sul e do Sudeste.
Há uma mobilização maior do que tínhamos no passado, mas ainda há muitas resistências. O paradoxo é esse. Ainda temos cientistas que negam o racismo e a misoginia e dizem que esses espaços não têm nada a ver com questões de gênero e raciais, que isso não é científico. Sobretudo nas ciências exatas, ainda estamos muito longe do ideal. Há uma sub-representação de mulheres, de negros. Por isso também os livros e outros projetos que eu tenho desenvolvido vão nesse sentido, de dizer que há algo estranho. A gente não deve naturalizar processos que não são biológicos, que não fazem parte de um determinismo darwinista, que são uma construção social e política.
O senhor, que é professor da UFRGS e mora em um estado majoritariamente branco, fez considerações recentemente sobre casos de racismo, como o episódio em que um idoso branco feriu com uma faca um motoboy negro e a vítima foi levada pela polícia como se tivesse cometido um crime. O Rio Grande do Sul é mais racista do que a Bahia?
Eu passei a maior parte da vida na Bahia e a gente sabe que a questão racial está colocada no estado. O racismo é sistêmico, institucional. Não quero estabelecer uma escala comparativa, e não podemos esquecer que 20% da população de Porto Alegre é negra. Mas as políticas do Rio Grande do Sul são feitas, na sua forma de ver o mundo, no seu dia a dia, a partir de perspectivas europeias. Acho que isso diferencia, por exemplo, do dia a dia em Salvador, do Recôncavo, de Feira de Santana, que eu conheço bem. As pessoas aqui se veem como europeias, se sentem muito orgulhosas de seus sobrenomes com SCH. As pessoas aqui não têm vergonha de dizer a outras que elas são inferiores porque são nordestinas, negras. Isso é um grande diferencial. Está colocado não só pelos indivíduos, mas pelas instituições, que há uma diferença. Se você fala com sotaque nordestino, as pessoas te colocam em um lugar inferior. Na Serra Gaúcha, eles falam: vocês, brasileiros. E com os indígenas é pior, eles são invisibilizados. Eu aqui sou sempre um estrangeiro. O fato de ser gaúcho é muito importante, inclusive entre os negros. Existe o afro-gaúcho. Ser negro e não ser gaúcho é diferente. As pessoas dizem que você não pode fazer determinadas coisas porque não é daqui. Há muitos negros jaboticabas, negros que têm que se adaptar ao sistema da branquitude.
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