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Alessandro Farias: "A gente tem sempre que falar do preservativo"

Por Victor Melo | Foto: Shirley Stolze | Ag. A TARDE

06/11/2018 - 9:00 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Infectologista fala sobre a profilaxia pré-exposição (PrEP), medicamento que reduz a probabilidade de infecção pelo vírus do HIV
Infectologista fala sobre a profilaxia pré-exposição (PrEP), medicamento que reduz a probabilidade de infecção pelo vírus do HIV -

Em 2017, 777 novos casos de HIV foram notificados na Bahia, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Para combater a propagação do vírus, novas estratégias estão sendo adotadas. Uma delas é a profilaxia pré-exposição (PrEP), um medicamento que reúne tenofovir e entricitabina, que reduz a probabilidade de infecção pelo vírus do HIV. O remédio passou a ser distribuído no Brasil no final do ano passado e chegou à Bahia em janeiro deste ano. A distribuição acontece em um único local, o Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (Cedap), no Garcia. Mais de 150 pessoas já tiveram acesso à droga. Elas fazem parte do chamado grupo prioritário, formado por pessoas que estão em maior risco de contato com o vírus. ”Não se trata o HIV com PrEP, se previne”, esclarece o infectologista Alessandro Farias, responsável pela distribuição do medicamento em Salvador. Ele reitera que a droga não substitui em nenhum momento outras formas de prevenção, como o uso de preservativos. Outra maneira de evitar o contágio é o uso da profilaxia pós-exposição (PEP), que previne o HIV em pessoas que já possam ter entrado em contato com o vírus. Para que esses remédios tenham efeito, é necessário que a pessoa faça o uso em até 72 horas do possível contato. Em entrevista à Muito, Alessandro também defende que profissionais de saúde de outras especialidades saibam falar sobre o tema com os seus pacientes. “A gente precisa de mais médicos que saibam trabalhar com o HIV”.

Como a PrEP age exatamente no combate ao HIV?

A PrEP é uma excelente estratégia de prevenção do HIV, porque você se antecipa ao risco a que a pessoa está se submetendo, na maioria das vezes, pela via sexual. Então, a literatura tem mostrado uma efetividade muito alta, as pessoas teoricamente não têm adquirido o HIV se elas tomam o medicamento todos os dias. Obviamente, tem algumas peculiaridades que fazem com que isso tenha sucesso. Primeiro, a pessoa tem que estar usando há pelo menos sete dias de forma ininterrupta para ter a droga adequada na mucosa retal – isso em pessoas que praticam sexo por via anal. Na mucosa vaginal, fica em torno de 20 dias. Nós temos focado no grupo de homens que fazem sexo com homens, que não tem parceria fixa e que não usa de forma consistente o preservativo. Então, depois de sete dias, a pessoa tomando o medicamento diariamente, teoricamente ela está bem protegida, focando também outras formas de prevenção do HIV. A gente já aprendeu, de forma brilhante, que não se previne o HIV focando apenas no preservativo.

O que é mais indicado?

Nós falamos hoje de prevenção combinada. Então, para cada cliente que chega, a gente está discutindo a PrEP. E, eventualmente, precisa usar a PEP, porque, às vezes, a pessoa chega para o serviço tendo sido exposto sexualmente até três dias antes daquela consulta. E focamos também na importância do preservativo, por causa de aumento de casos de outras DSTs, como a sífilis, que tem incomodado bastante os serviços, e o próprio risco de interrupção do antibiótico de escolha para tratar a sífilis. Há momentos de dificuldade com relação à disponibilidade das drogas para tratar sífilis. Gonorreia também é um problema muito sério que a gente tem atravessado, por causa da resistência bacteriana aos antibióticos que a gente costuma usar. E aí é preciso ver as parcerias, se a pessoa tem relação com alguém que possui o HIV, se está tomando remédio, porque os remédios para quem tem HIV são uma forma extremamente importante de prevenção. A circuncisão masculina é outro ponto que a gente tem discutido, embora isso no Brasil não seja bem divulgado. Mas a circuncisão masculina protege de 60% a 65% das DSTs, então é uma estratégia boa para quem não é circuncidado.

Hoje existe um grupo específico que recebe o medicamento. Como esse grupo é definido?

A prioridade é de homens que fazem sexo com homens, que não têm parceria fixa e não fazem uso consistente do preservativo. E também ofertamos para a população trans que transa por via anal. Óbvio que você tem que encontrar também outras pessoas que estão submetidas a riscos, mas em geral, quando você vai para a literatura, a prevalência de homens que fazem sexo com homens varia entre 10% e 25%, dependendo do estado. E na população trans que transa por via anal, isso chega a 32% em relação à população geral, que é de 0,5%. A gente tem que entender que tem que saber utilizar essa ferramenta na pessoa certa. Porque senão a gente vai estar jogando fora um dinheiro que é limitado e não vamos teoricamente interferir na epidemiologia do HIV.

Existe uma crítica acerca da PrEP. Algumas pessoas afirmam que muitos usuários do medicamento deixam de usar o preservativo. Quais os procedimentos que a pessoa que faz uso deve seguir?

Isso aí é uma ideia preconcebida. Os trabalhos não têm mostrado que quem usa a PrEP deixa de usar o preservativo. O que a gente tem visto, na prática, no nosso serviço, é que isso não acontece. E sabe por que não acontece? Porque essa pessoa está tendo um acesso mais frequente à informação, a aconselhamentos que mostram a importância do preservativo. A PrEP não veio para substituir o preservativo, pelo contrário. A PrEP e o preservativo são incomparáveis. Com a PrEP, você só previne o HIV. Já o preservativo previne gravidez indesejada e todas as DSTs, inclusive DSTs que não possuem outras formas de prevenção, como gonorreia e sífilis. A gente tem visto o aumento de casos de hepatites A e C entre homens que fazem sexo com homens, que tradicionalmente não é uma doença relacionada ao sexo. Então, a coisa é muito mais complexa. O fato de a prevenção ser combinada é passada de forma clara para o cliente quando ele chega até nós. Mostramos que a camisinha tem o espaço dela, e as pessoas, em geral, têm mostrado que continuam a frequência do preservativo. Muitos inclusive dizem ter aumentado o uso, e outros afirmam não conseguir mais transar sem preservativo, por se lembrar da conversa com o serviço de saúde. O acesso à informação é fantástico nesse aspecto. Então, isso aí é um mito, não é um fato. No final de 2020 vamos mostrar isso em um trabalho científico.

A PrEP e o preservativo são incomparáveis. Com a PrEP, você só previne o HIV. Já o preservativo previne gravidez indesejada e todas as DSTs

Há pesquisas que já indiquem uma redução no número de infectados neste grupo de risco específico após a adoção da política de PrEP?

A PrEP Brasil (www.prepbrasil.com.br), que é um trabalho que foi feito previamente, mostrou que as pessoas não adquiriram HIV. São pessoas que, teoricamente, estão se expondo, porque não têm parceria fixa e podem não estar usando de forma 100% o preservativo, não têm adquirido o HIV. No trabalho da PrEP Brasil, quem pegou o HIV foi porque continuava se expondo e não tomava o medicamento de forma adequada. Isso foi comprovado porque não havia nível sanguíneo do medicamento, ou seja, ela não estava tomando o remédio. Mas para quem está tomando o remédio, existe eficácia. Isso já está provado em diversos países. Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa já há um impacto epidemiológico importante.

O medicamento já está sendo distribuído no interior da Bahia?

Não, infelizmente. O Ministério da Saúde treinou alguns serviços do Brasil em alguns estados. Esses serviços, em sua maioria, possuem uma estrutura mínima para prestar atendimento às pessoas. Infelizmente, no momento, o único serviço do estado que faz a PrEP é o Cedap, em Salvador. Mas a gente torce que a Secretaria da Saúde e o ministério expandam isso o mais rápido possível.

O tratamento de HIV no Brasil é referência em todo o mundo. Mas dados do Ministério da Saúde indicam que houve um crescimento da doença entre homens de até 29 anos e em mulheres de 15 a 19 anos. A que você atribui isso?

É uma falha do uso do preservativo numa parcela da população que, teoricamente, tem uma atividade sexual mais intensa. Então, quando você junta a não parceria fixa, o não uso do preservativo e o sexo por via anal, onde o risco é maior do que o sexo por via vaginal, você tem esse resultado.

Há quem defenda que o Estado não deve custear medicamentos antirretrovirais para os portadores de HIV. Se essa política pública fosse suspensa, qual seria a consequência? A política do PrEP poderia ser afetada?

Particularmente, não acredito nisso porque no sistema hoje a gente sabe que tratar HIV reduz custo e transmissão do vírus. E se a gente retrocede nesse aspecto, a gente vai aumentar custo. Se uma pessoa tiver dificuldade para se medicar, e ela evolui na história natural do HIV, ela vai adoecer, ela vai ser internada, e isso vai gastar muito dinheiro público. A gente percebe hoje que quem possui o HIV toma o remédio e não têm carga viral detectável, não passa o vírus adiante e não adoece. Então, é muito melhor você dar o medicamento do que não dar. Eu não tenho nenhuma preocupação em relação a isso, pelo contrário. A PrEP está sendo agregada como uma nova estratégia de prevenção para que a gente diminua a incidência de novos casos e a gente diminua dinheiro cuidando das pessoas quem têm HIV, porque se você contrai o HIV hoje, você vai ter para o resto da vida. A gente precisa ter a lucidez de que com os trabalhos, como da PrEP, que está sendo iniciado, precisamos mostrar resultados disso. É por isso que precisamos dar o remédio para a pessoa certa, para quem está se expondo, e aí os níveis de exposição são dos mais variados possíveis. Você tem desde pessoas que têm três, quatro, cinco parceiros diferentes com quem se relacionam sexualmente em um mês, até 120,130 pessoas que se relacionam sem preservativo de forma consistente com pessoas diferentes. Então, essa pessoa poderia adquirir o HIV a qualquer momento. E aí uma pessoa que adquire o HIV transando com 30 pessoas diferentes em um mês vai disseminar o HIV, óbvio. As pessoas chegam ao nosso serviço para definir se podem tomar o remédio ou não. O critério inicial é ter certeza de que a pessoa não tem HIV. A gente avalia se ela tem um quadro clínico sugestivo de uma virose que pode representar o HIV pego recentemente e a gente faz o teste rápido. Com frequência, a gente tem visto pessoas nesse contexto. A pessoa vem sem sentir nada, está dentro do grupo prioritário, faz o teste rápido e ele dá positivo, e muitas vezes são pessoas que fizerem o teste há seis meses, um ano, e estava negativo. Esse nível de exposição é muito intenso.

O senhor acredita que deva haver melhorias no serviço oferecido aos portadores do HIV?

A gente precisa de mais médicos que saibam trabalhar com o HIV, não tenho dúvida disso. Os serviços estão abarrotados de pacientes, assim como as farmácias que dispensam medicamentos para o HIV, e não existe estrutura para atender os pacientes que estão chegando. A gente precisa de mais pessoas e de mais serviços. A prevenção de HIV extrapola o trabalho do infectologista. Ela tem que estar em todas as especialidades médicas, serviços e profissionais de saúde. Numa pessoa de 65 anos, por exemplo, segundo a literatura, o percentual de disfunção erétil aumenta. E a pessoa ainda tem vontade de fazer sexo, então o que é que ela vai fazer? Tomar remédio para aumentar potência. Essas pessoas, normalmente, não estão preocupadas com preservativos, elas estão preocupadas com a ereção, e ainda vemos pessoas adquirindo HIV nessa faixa etária. Nós temos que nos preocupar de uma forma global. Não sou só eu que tenho que estar falando de prevenção ao HIV, não sou só eu que tenho que estar prescrevendo a PrEP. O urologista, a ginecologista, o clínico também deveriam estar fazendo esse trabalho. Quando você atende uma pessoa com sífilis no posto de saúde, significa que ela não está fazendo sexo com camisinha, e se ela pega uma DST, também está exposta a pegar outras. Não é raro ver um paciente com HIV, sífilis, hepatite B e HPV.

A gente não deve ficar aguardando a vacina contra o HIV chegar e não tomar as atitudes de prevenção que já existem

Portadores do vírus que tomam medicação e ficam com a carga viral indetectável correm o risco de transmitir a doença em uma relação sem preservativo?

Se a gente entender que essa pessoa está tomando o remédio corretamente e tem cargas virais indetectáveis, teoricamente, essa pessoa não transmite. Mas isso não é uma apologia para que as pessoas transem sem camisinha só porque estão com a carga viral indetectável. A gente tem sempre que falar do preservativo. Quando a gente cuida de uma pessoa com HIV, a gente faz o exame de carga viral a cada seis meses. Se você faz um exame em janeiro e o outro em julho e o resultado dos dois é indetectável, você infere que o tempo todo ela está indetectável. Mas eu não posso provar que a carga viral de janeiro a julho estava indetectável. Ela pode ter aumentos transitórios durante esse período devido a um quadro viral, ou esquecimento do uso do medicamento até tomar uma vacina. Eu não posso garantir para ninguém que indetectabilidade é eterna.

Quais os efeitos colaterais da PEP? Existe alguma restrição para portadores da doença?

Não tem restrições. Os efeitos colaterais são náuseas, esporadicamente vômitos e diarreias, e raramente alergias. Durante os 28 dias, são muito raros esses efeitos. As medicações são muito potentes e seguras.

Qual a forma de prevenção mais eficaz para as DSTs hoje em dia?

A forma mais eficaz é a prevenção combinada, a mandala de prevenção. É você combinar formas diferentes de se prevenir. A camisinha está sempre junto, tomar as vacinas de hepatite B e HPV, que estão disponíveis na rede pública. É importante também fazer a checagem do estado sorológico, fazer teste de HIV e teste de sífilis pelo menos uma vez por ano. Isso é o básico que a pessoa tem que fazer. O métodos de prevenção subsequentes vão depender do grau de exposição de risco de cada um.

O senhor acredita que vai demorar para que seja desenvolvida uma vacina para o HIV?

Não vai demorar, já existem duas principais com estudos em fase avançada. Mas a gente não deve ficar aguardando a vacina chegar e não tomar as atitudes de prevenção que já existem. A vacina, quando chegar, vai se encaixar na mandala de prevenção do HIV. Nunca abandonaremos o uso do preservativo, nem o tratamento de prevenção ao HIV. A gente acredita que ela vem para somar e não para substituir.

Até julho deste ano, cerca de 70 pessoas faziam uso da PrEP em Salvador. Qual é esse número hoje?

Esse número cresceu, está acima de 150, mas ainda é muito modesto, justamente porque só existe o Cedap, em horários específicos, para atender pessoas com risco de adquirir o HIV. Você acha que a gente vai conseguir prevenir na nossa cidade, no nosso estado, tendo um único serviço fazendo isso? Não vai.

Existe alguma parcela da população que ainda tenha resistência a procurar a PrEP?

Existe uma dificuldade com a população trans. Existem muitos preconceitos envolvidos nesse processo, por causa do medo de como as pessoas tratam essa população. Existe o preconceito das pessoas que acham que só porque é trans tem risco de pegar HIV, mas não é assim. Tem pessoas trans que possuem parceria fixa e não transam por via anal. As pessoas trans que a gente quer que venha são aquelas que não possuem parceria fixa, transam por via anal e não fazem uso consistente do preservativo. As que procuram o serviço percebem que a gente trata de sexo de uma forma normal, sem julgamentos. Estamos ali para definir os critérios de elegibilidade para fornecer o medicamento para a pessoa quando ela estiver se expondo ao risco de contrair o HIV, e não para julgar.

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