MUITO
Alguém chama um psicólogo para esse galo?!
Confira a crônica de Luisa Sá Lasserre
Por Luisa Sá Lasserre*
Às 5h45, pelo basculante do meu banheiro, já consigo escutá-lo. Neste horário, nada mais comum e certo quanto o canto de um galo que tece a manhã. Moro a vários metros acima de onde imagino que ele esteja, no terreno de alguma casa na rua lá embaixo, mas consigo ouvi-lo muito perto. Ele canta porque os galos cantam com o raiar do Sol, é uma questão de relógio biológico. E demarcação de território.
O problema é que ele segue pelo resto do dia. Às 8 horas, seu cucurito soa como quem diz: vão trabalhar, cambada. Às 10 horas, ele segue cantando com o Sol já alto no céu. Passa de meio-dia e ele não dá sinais de cansaço na voz. Às três, me pego pensando: alguém avisa a esse galo que já estamos no meio da tarde? No cair da noite, meu marido informa: o galo psicopata continua cantando. Não, ele não se cansa, ele é brasileiro e não desiste nunca.
Começo a ficar preocupada com a saúde mental do coitado. Cucuritar assim, repetidamente, o dia inteiro e até de noite? Talvez psicopata seja uma palavra forte, mas não deve ser muito normal. Inconformada, fui pesquisar e, diferente do senso comum, andei lendo que, sim, os tais bichos podem cantar a qualquer hora do dia, não só ao amanhecer. Será?!
É fato que os galos cantam para demarcar seu território, como quem diz “aqui quem manda sou eu”. Quando um deles solta o verbo, outro por perto responde de lá “pois aqui sou eu”. Daí a expressão “cantar de galo”, ou seja, tirar uma onda de bacana. Talvez galos e homens não sejam tão diferentes assim.
Só que este canta insistentemente, repetidamente. Chega a dar nervoso. Será que está tudo bem? Estará ele ansioso? Depressivo? Desesperado? Alguém manda chamar um psicólogo, por favor. Pode bastar apenas algumas sessões ou quem sabe seja necessário um remedinho. Nesses dias de hoje, em que quase tudo é capaz de gerar diagnóstico e medicalização, não duvido.
Mas não, talvez o pobre galo só precise de um amigo com quem desabafar. Todos nós precisamos. Vai ver tá meio pra baixo, jururu, deprê, se sentindo um pouco só. Eu sei que hoje tudo vira tema para a terapia, e mencionar “a minha psicóloga” ou “o meu terapeuta” é até chique. Mas, e quem não pode bancar? Nem tudo é caso para a sala de um consultório, afinal. A tristeza é parte da vida, e faz bem encará-la sem tentativas rápidas de fuga.
Eu sei que a gente se acostumou a promessas de milagres instantâneos – os procedimentos estéticos antienvelhecimento estão aí para comprovar, e os remédios que acabam com os seus sintomas em poucas horas, também. Mas problemas não se resolvem em passe de mágica. Uma pílula não traz a cura. A barra de rolagem não muda a vida de ninguém.
Muitas vezes, nada melhor do que um bom amigo mesmo, que sabe escutar com atenção e dizer o que a gente precisa. Não há dinheiro que pague nem se acha em qualquer esquina. Como disse o João Cabral, “um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos”. Não é bonito falar de como precisamos uns dos outros assim?
O galo aqui da rua continua cantando enquanto escrevo esta crônica. Não sei o que ele quer, do que se queixa, a quem ele clama. Arauto do nascer do Sol, dizem que simboliza um bom augúrio, revelando a luz de um novo dia. O daqui, não sei. Talvez seja um pedido de socorro, uma tentativa de chamar a atenção, ou só mesmo para tirar uma onda de bacana.
Já estou até me afeiçoando a esse galo e seu canto incessante. Quer saber? Deixa o galo cantar...
*Luisa Sá Lasserre é autora do livro Pensei, mas não disse (Ed. Patuá)
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