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CRÔNICA

Ali, embaixo do meu nariz

Confira a crônica da Revista Muito deste domingo

Por Franklin Carvalho*

04/12/2022 - 6:00 h
Imagem ilustrativa da imagem Ali, embaixo do meu nariz
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Nasci narigudo, aspirando a um grande futuro.

Minhas primeiras lembranças são de cheiros, dos carneiros suados, do alecrim da caatinga, dos cajus e das chuvas que vinham em dezembro. Como já disse outra vez, da tinta à base de cal que pintava as casas quando dezembro trazia a festa da padroeira.

Mas também o cheiro de éter, porque padecia de otite crônica, tomando injeção na farmácia de minha tia quase toda semana. Já nos meus 30 anos, um médico me disse que a doença provinha do vento que entrava por minhas largas narinas e desarranjava o miolo e adjacências. Esse mesmo médico fez a cirurgia que reconstituiu o tímpano esquerdo lesado por uma das últimas otites, sempre restando alguma perda auditiva.

Mas, vejam, ainda é do nariz que falo, e ele me ensinou a não chorar diante de agulha e de seringa, a não temer médico e a ser paciente. Pelos meus cálculos, a aeração diferenciada deve ter feito de mim um homem mais ventilado, menos conservador em tudo. Não se trata de um mero detalhe no corpo, mas algo que está à frente e toma a direção.

A relação com este órgão é tão complexa que, no dia em que usei o pó de rapé para aplacar rinite e sinusite brabas, decidi que estava curado e o milagre simplesmente aconteceu. Acho que aquele preparado acre, mistura de tabaco, cravo e ervas, agrediu tanto as vias nasais que eu e o nariz entramos em definitivo convívio pacífico.

Lembro-me que, antes da cura, ao me ver desesperado, coçando demais o rosto na Faculdade de Comunicação, um jovem colega, Wagner Moura, recomendou: "Você precisa se cuidar, cheirar menos". Pobre de mim! E parece que aquela cena dramática o abalou tanto que ali mesmo ele resolveu deixar o jornalismo e fazer teatro, TV e cinema.

Já houve parente dizendo que herdei este aparelho de remota ancestralidade judaica, e gente que certifica a arquitetura cafuza da peça. O apelido de Pinóquio nunca me ofendeu, mas, à medida que vou galgando a idade, a montanha cresce na face e fica mais horrenda, porque acumulo tempo, e tempo é mentira.

Mudando de assunto, soube que os cientistas já desenvolvem inteligência artificial com percepção olfativa, e que foi muito difícil mapear cheiros, porque o organismo humano tem 400 receptores especializados para isso, enquanto possui apenas três para cores. Em resumo, somos atacados por tantas mensagens olfativas que fica complexo codificar. Mas logo a máquina poderá fungar doenças, riscos ambientais, qualidade de alimentos e de perfumes.

Ouso sonhar mais, com uma era em que pacotes de conteúdo, aulas, obras de arte, sejam transmitidos pelo olfato, em processos que deem descanso aos nossos olhos e ouvidos. Usaríamos apenas as ventas no meio das fuças.

Por outro lado, talvez seja exigir demais que a inteligência artificial fareje também a qualidade das pessoas. Sim, porque a expressão "há algo de podre no ar" vai além do lixo acumulado na calçada ou da vala que transborda na chuva. Também se refere a fedores como hipocrisia, mexericos, fake news, conspirações. Coisas que exalam até nos ambientes sofisticados, misturadas às mais caras fragrâncias importadas.

Tomara, enfim, que a máquina fique esperta como o meu nariz, que torço para tudo o que cheira mal. Mas que, ao detectar a podridão perfumada, sofra menos do que eu sofro com esse ranço.

*Franklin Carvalho é autor de Onde eu estava com a minha cabeça (Patuá Editora)

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Tags:

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