MUITO
Alma nua

Por Fabiana Mascarenhas

A dois quilômetros da entrada de Massarandupió, na Linha Verde, e a apenas uma hora de distância de Salvador, uma comunidade pratica o naturismo e tenta viver em harmonia com a natureza
Eram 11h30 de uma sexta-feira ensolarada quando a equipe de reportagem chegou à Ecovila da Mata, em Massarandupió, na Linha Verde. Ao atravessar o portão de madeira que dá acesso ao sítio de 300 mil metros quadrados, somos recebidos pelo idealizador do espaço, o filósofo e ativista ambiental Waldo Andrade, 62. Com um enorme sorriso no rosto, sandálias de couro nos pés e o corpo nu, Waldo nos dá boas-vindas. "É uma alegria poder recebê-los". Ali próximo, pessoas de diferentes idades e profissões realizam seus afazeres e circulam pelo ambiente igualmente nuas. Estamos na única ecovila naturista de que se tem conhecimento no mundo.
A apenas uma hora de distância de Salvador e situada a 2 km da entrada de Massarandupió - pequeno povoado pertencente ao município de Entre Rios -, a Ecovila da Mata surgiu há três anos. Há pelo menos dois tornou-se moradia e casa de veraneio de adeptos do naturismo que buscam integrar uma vida social harmônica e espiritualizada a um estilo de vida sustentável. No local, não há luz elétrica e 70% da área é mata atlântica. Dentro dela, o rio Timbituba atravessa um ecoparque, que conta com cinco trilhas, piscinas naturais e diferentes espécies de plantas e bichos. Ali também são realizados palestras, cursos e workshops, além de vivências que reúnem algumas das práticas xamânicas e rituais indígenas. "Como ocorre em outras ecovilas, pregamos a convivência em harmonia com a natureza. A diferença é que praticamos a nudez social com a intenção de trabalhar a aceitação do corpo e encorajar o autorrespeito, o respeito ao próximo e pelo meio ambiente", diz Waldo, indiferente às picadas dos mosquitos, enquanto caminhamos entre as árvores.
Exceto um funcionário, somos os únicos vestidos no ambiente. O almoço - vegetariano - é servido em um mesão coletivo. As pessoas nuas presentes cobrem com uma canga de praia as cadeiras onde irão sentar. O cuidado é uma regra adotada sempre que utilizam assentos de uso comum. Enquanto todos se servem, Waldo nos conta que mora no local com a mulher, Marisa Fraga, 57, cocriadora e gerente da ecovila. Quando o casal comprou o terreno, o proprietário - um idoso que não se rendeu às sucessivas investidas das grandes construtoras - fez apenas uma exigência: que preservassem a área verde. Além deles, quatro famílias vivem no espaço e pagam R$ 70 por mês para ajudar na manutenção. Outras 20 adquiriram lotes pela quantia de R$ 40 mil e aguardam a construção das casas. Há, ainda, outros 20 à disposição dos interessados. O local dispõe de um centro de reciclagem, horta, herbário e pomar, todos de uso coletivo. Também existe uma área para hospedagem de visitantes. Segundo Waldo, todo recurso adquirido é utilizado para investir em melhorias.
Regras
Para fazer parte da comunidade, no entanto, é necessário obedecer a algumas regras. A principal delas é seguir o Código de Ética Naturista. São consideradas faltas graves, por exemplo, ter comportamento sexualmente ostensivo ou praticar atos obscenos nas áreas públicas; assim como portar ou utilizar drogas tóxicas ilegais. "Naturismo é mais do que ficar nu. É uma filosofia de vida. Não praticamos nem incentivamos qualquer tipo de ato sexual público entre os adeptos", pontua Waldo. A prática do naturismo é uma exigência para o morador, mas ele é livre para receber visitantes não adeptos da filosofia.
Já as casas devem ter o tamanho máximo de 100 metros quadrados e construídas com recursos naturais e materiais reciclados. A maioria das residências é erguida com tijolo de adobe - composto de terra crua, água, palha e fibras naturais -, como esterco de gado, por exemplo. "Esses tijolos são moldados artesanalmente em fôrmas e cozidos ao sol", explica a arquiteta Mariana Rodrigues, 29, filha de Waldo e também naturista. Outros materiais comuns são o solo-cimento - mistura composta por terra, cimento e água -, o pau a pique e toras de eucalipto. Tem ainda acabamento em terra-esterco, pintura de terracal, forros térmicos de lona e o reaproveitamento de bambus e vidros.
Alguns gastam R$ 2 mil para construir. Outros, R$ 200 mil. Tudo depende da estrutura que se deseja. Em uma das casas não há, sequer, paredes no banheiro. Todas as necessidades fisiológicas são feitas tendo como cenário a própria natureza. Como não há luz elétrica, as residências têm geradores próprios. Modelo semelhante é adotado em diversas outras ecovilas. No Brasil, não existem dados precisos sobre o número dessas comunidades. De acordo com a GEN (Rede Global de Ecovilas), maior entidade do setor, existem mais de 15 mil espalhadas pelo mundo. Em comum, a adoção de práticas ambientais e sustentáveis. Isso inclui a produção orgânica dos alimentos, a geração de energia limpa, o destino adequado dos resíduos sólidos e líquidos, a reciclagem e o reúso, a economia solidária e de troca e a preservação das florestas e mananciais de água.
Primeiro morador da Ecovila da Mata, o funcionário público Rogério Lopes, 47, decidiu trocar a vida agitada e individualista da cidade para morar em uma comunidade que tem entre seus princípios a convivência fraterna e solidária entre as pessoas e um estado de consciência elevado. Apaixonado pela natureza e acostumado a acampar, não teve dificuldades para se adaptar. "Imagina o que é viver pegando água do poço, usando energia solar, ouvindo o barulho do rio e dos pássaros? É maravilhoso", diz Rogério, que sempre se manteve alheio aos comentários de alguns colegas sobre o fato de ter ido viver nu, no meio do mato. "Ignoro, eles não sabem o que dizem", comenta, rindo.
Assim como ele, a consultora em higiene natural e doula gaúcha Fernanda Paz, 30, largou tudo no Rio Grande do Sul e veio morar com a filha, Serena, de 1 ano e 5 meses, na ecovila. Chegaram exatamente no dia em que a nossa reportagem produzia esta matéria. Para alguns, um ato insano. "Será que viver no desapego, de forma simples e comunitária, cuidando das crianças, plantando para comer e multiplicando é mais louco do que ficar duas horas no carro ou ônibus para ir trabalhar? É pior do que terceirizar a educação dos filhos? Comer sem saber a procedência dos alimentos? Inundar-se de medicações?", questiona.
Parece óbvio, mas tomar essa decisão não costuma ser fácil, principalmente quando se trata de uma ecovila naturista. "Muita gente não entende o porquê de estarmos aqui, já que tínhamos uma boa vida, carro, um ótimo apartamento, dinheiro, emprego, todas essas coisas que são sinônimo de felicidade. Só que a gente começou a perceber que nada disso fazia sentido. Aqui, nos encontramos física e espiritualmente. Largamos tudo e viemos, mas pagamos um preço por isso", afirma o técnico agrícola Gustavo Lothammer, 34.
Nudez castigada
Há seis meses, ele se mudou com os dois filhos, de 10 e 5 anos, e a mulher, a acupunturista e doula Alessandra Santos, 35, para a ecovila. Lá, se casaram novamente. Só que, desta vez, a cerimônia aconteceu no meio do mato e com todos nus. A celebração simbólica não contou com a presença da mãe de Alessandra. "Ela não veio porque é contra essa vida que escolhemos. Procuro compreender. Acredito que será um processo lento e gradual, ainda há muita resistência quando se fala em naturismo. Mas acho que um dia ela vai conseguir, ao menos, respeitar", diz, sem perder a esperança.
Eles não são os únicos a ter a nudez castigada com o doloroso recurso do distanciamento daqueles que amam. Esse é, inclusive, um dos motivos que levam muitas pessoas a esconder que praticam ou têm interesse pela filosofia naturista. Algumas delas aceitaram dar entrevista, mas pediram para ter os nomes omitidos nessa reportagem. Há, atualmente, 2.500 pessoas cadastradas na Federação Brasileira de Naturismo, número que anda longe de representar o total de praticantes, de acordo com a presidente, Renata Freire, 59. No país, há 39 entidades naturistas, entre comunidades e grupos organizados, espaços rurais e hotéis, clubes e praias. "Há uma visão equivocada de que o naturismo está associado à sacanagem, ao sexo explícito. O que não tem nada a ver com o que pregamos. Não podemos ser confundidos com os grupos que frequentam praias de nudismo apenas com a finalidade de transar em público ou fazer suingue", desabafa.
Infelizmente, a praia naturista das Dunas, em Massarandupió - que está entre as oito existentes no país -, tem enfrentado esse problema, o que afasta os frequentadores. Segundo o diretor de praia da Associação Massarandupiana de Naturismo (Amanat), Jânio Pereira, 30 anos, a falta de fiscalização é um dos entraves. "No verão é mais frequente, mas, depois, diminui. Não temos poder de polícia. Ficamos de mãos atadas", afirma. A reportagem tentou entrar em contato por telefone diversas vezes com o prefeito de Entre Rios, Fernando Almeida, mas não teve êxito.
A praia naturista de Massarandupió foi fundada em 1999 pelo ex-guia turístico Miguel Calmon, 67, que lamenta. "Sempre proibi e fui contra esse tipo de prática. Isso só mancha a imagem do naturismo", diz Miguel, que é o atual presidente da Associação Baiana de Naturismo, mas está afastado por questões de saúde.
A situação é mais um dos motivos que levam os naturistas a buscarem a Ecovila da Mata. "Talvez seja porque não praticamos o nu pelo nu, não tem a ver com o físico. Ao tirarmos a roupa, nos despimos não só das vestimentas, mas do preconceito, da vaidade. Passamos a aceitar o outro como ele é, o vemos na essência", diz Waldo. E eu, enfim, entendo o real significado de um termo que ouvimos repetidas vezes nas 24 horas em que ali permanecemos: alma nua. É ela que se desnuda quando as amarras mentais caem. Faz todo sentido.
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